Qandeel Baloch, uma mártir paquistanesa
O seu irmão orgulha-se de a ter matado.
Qandeel Baloch, uma simpática e dinâmica jovem de 24 anos foi assassinada na passada sexta-feira pelo seu irmão na República Islâmica do Paquistão. Presença assídua nas redes sociais com cerca de um milhão de seguidores, Qandeel surgia nas mesmas em poses pouco convencionais para as normas morais/religiosas vigentes no Paquistão. Há pouco tinha causado grande agitação social com a publicação de selfies com um dignitário muçulmano.
Obrigada a um casamento ainda menor, veio a separar-se do marido após terem um filho, afirmando o seu direito, como mulher, a viver a sua vida própria e independente. Enganou-se: a sua independência valeu-lhe a morte pelas mãos do seu próprio irmão, que confessou tê-la drogado e estrangulado para salvar a honra da família Boloch. Entre outros absurdos, o assassino declarou ter orgulho em ter matado a irmã e que tinha ganho um lugar no céu uma vez que ela estava a trazer a desonra para os Boloch: as raparigas são supostas ficar em casa e respeitar as tradições, o que a irmã nunca tinha feito. Segundo a mãe, teria sido o religioso muçulmano que vira publicada a sua imagem nas selfies de Qandeel que teria inspirado o irmão a matá-la.
Qandeel falava de “girl power” e queria, na sua ingenuidade, “inspirar as mulheres maltratadas e dominadas pela sociedade”, num país que, no Relatório sobre a Desigualdade de Género de 2015 do Fórum Económico Mundial que abrange 145 países, aparece classificado em penúltimo lugar, só sendo vencido nesta ignominiosa classificação pelo Iémen.
Para além do repugnante homicídio, o que é mais dramático é saber que uma grande parte da população paquistanesa está do lado do assassino e que o sistema judicial e legal no Paquistão, embora formalmente puna estes homicídios em defesa da honra, irá, muito provavelmente, permitir a sua libertação em breve.
Na verdade, a violação e a morte de mulheres no Paquistão (tal como na Índia), não sendo um desporto nacional, continua a ser uma realidade quotidiana tolerada e aceite por muitos responsáveis políticos e religiosos. No parlamento da província do Punjab foi aprovada, no passado mês de Fevereiro, por unanimidade, uma lei para a protecção das mulheres da violência que prevê, por exemplo, que no caso em que um marido tortura e violenta a sua mulher já não poderá, como sucede actualmente, expulsá-la de casa.
Esta disposição, por si só, foi alvo de severas críticas de altos responsáveis político/religiosos considerando que a mulher, a partir de agora, podia expulsar o marido de casa depois de uma discussão, o que levará ao “enfraquecimento das relações” e à destruição do sistema familiar uma vez que os homens serão humilhados. A possibilidade de a mulher levar o marido a tribunal é considerada por estes “responsáveis” como promotora de mais violência já que é um natural “instinto dos homens” retaliar e que, passada a fase judicial, o homem se irá vingar. Refira-se que o que a lei procura, neste aspecto, é tão-somente acabar com os inúmeros obstáculos burocrático-legais que impedem o início – quanto mais o andamento – de uma queixa-crime de uma mulher contra o marido por violência doméstica. Actualmente, a mulher que apresenta uma queixa de violência doméstica numa esquadra é aconselhada a regressar a casa e a resolver a disputa com o marido, uma vez que se trata de um assunto privado. A partir de agora, por exemplo, as funcionárias dos serviços de protecção passarão a poder entrar em qualquer lado para ir buscar uma mulher violentada.
Os opositores desta lei acusam-na de destruir o casamento, promover o divórcio e de tornar públicos os assuntos privados. A possibilidade, prevista para casos de violência grave, de os agressores serem impedidos de se aproximarem das vítimas e obrigados a utilizar pulseira electrónica é considerada “insultuosa” para os homens!
Mas, sublinhe-se, estas não são as opiniões de meia dúzia de conservadores machistas desfasados dos tempos que vivemos. Mais de 30 grupos religiosos, entre eles todos os principais partidos islâmicos, já condenaram esta lei e exigem a sua revogação por a mesma ser “contrária aos ensinamentos islâmicos” e visar tornar o Paquistão num estado secular. Um representante de uma organização não-governamental de protecção dos direitos das mulheres, pelo seu lado, referiu que esta lei, se vier a ser aplicada, virá alterar radicalmente o equilíbrio de poder tradicional entre homens e mulheres, algo que o lobby religioso não estará disposto a aceitar.
Por isso mesmo, e apesar disso mesmo, Qandeel Baloch subiu ao céu como uma mártir luminosa que morreu no campo das batalhas contra as trevas.
Advogado, francisco@teixeiradamota.pt
Texto corrigido às 10h57 de 22/07/2016: na entrada do artigo e no segundo parágrafo foi alterado "ter morto" para "ter matado"