Don Cheadle não filmou uma carta de amor a Miles Davis
Em Miles Ahead, nos cinemas, Don Cheadle encarna Miles Davis. O actor e realizador defende que este é um filme que se deve ver como um solo de trompete.
Nunca se ouviu sair da boca de Don Cheadle o vocábulo “biopic” (filme biográfico) para descrever Miles Ahead. Cheadle, realizador e protagonista do filme que coloca no grande ecrã a vida do trompetista Miles Davis, recusou desde o início assinar uma obra que seguisse o habitual arco narrativo, começando nas origens humildes, atravessando a vida sofrida, enaltecendo o talento e a heróica superação da adversidade, e culminando na ascensão gloriosa contra tudo e todos (com uma eventual queda posterior). Recusou isso tanto quanto recursou qualquer linearidade que levasse Miles do berço até à sepultura. Ao invés, confessa Cheadle ao PÚBLICO, quis que Miles Ahead se visse como um tema de jazz, que se desenrola ao sabor de um improviso, saltando para trás e para a frente na cronologia sem grande preocupação que não seja seguir o groove.
O tom é dado pela cena inicial de Miles Ahead. Diante de um insistente e metediço repórter da Rolling Stone de microfone em punho, instado a contar a sua história, Miles segura a trompete e sopra. “É como se nos estivesse a contar a história através de um solo”, compara Cheadle. “E quando isso acontece, desaparecem as certezas – mistura-se factos, ficção, fantasia, memórias, sonhos, realidade, mitologia.” Para um relato factual e preciso da vida de Miles Davis, adverte o actor e realizador, pode muito bem o espectador dirigir-se a outras fontes preocupadas com o rigor ou com a mitificação. Não faltam livros, artigos, muita coisa consultável na Internet que pretende reconstituir com o preciosismo possível determinados períodos da vida do músico. “Quis fazer algo que não se pudesse fazer num documentário”, resume.
Por isso, assim que a resposta se começa a escutar, é de uma viagem pela vida de Miles Davis que se trata, polvilhada por cenas de gangsterismo ou violência doméstica, com epicentro bem demarcado num período de reclusão entre finais dos anos 70 e princípios dos 80, num cenário de quebra de autoconfiança, problemas com drogas, ego ligeiramente acima do nível da sargeta e a sugestão de que, artisticamente, é possível que o músico esteja totalmente esgotado. A fragilidade e vulnerabilidade que encontramos no ecrã dá eco à vontade de Cheadle em “não fazer qualquer filme de glorificação”, mas sim um objecto “que não se esquivasse às partes mais negras da vida dele – porque ele também não o fez.” Tudo o que se prende com violência e insegurança em Miles Ahead tem por inspiração a própria autobiografia de Miles Davis. “Se ele não tinha pudor nem vergonha”, argumenta Cheadle, “eu também não deveria ter. E não me propus escrever uma carta de amor para o Miles Davis, porque acho que ele não teria querido algo assim. Ele estava interessado em criatividade e em expressão, queria avançar para a cena seguinte e não ficar com o olhar preso na última.”
Claro que “os momentos de dúvida e incerteza antes de se levantarem e triunfarem”, material tipicamente usado pelos biopics não está assim tão longe daquilo a que se assiste em Miles Ahead, mas no geral o filme evita a tipificação deste subgénero de cinema. Até porque Don Cheadle pensava com frequência em Walk Hard, a caricatural biografia do fictício Dewey Cox – cujos traços lembram inevitavelmente Johnny Cash –, “um filme hilariante”, e que o lembravam de todos os clichés (explorados até ao ridículo) que deveria evitar. Fazer com Miles Davis, num filme sério, o que outros fizeram como paródia seria uma derrota.
Miles do presente
A música de Miles Davis faz parte da vida de Don Cheadle desde criança. Era música que os pais ouviam em casa e que encontrava sempre que a curiosidade o levava a vasculhar a colecção de discos daqueles. Lembra-se sobretudo de chegar até ao trompetista através do clássico Somethin’ Else, de Cannonball Adderley, e de Porgy and Bess, álbum que era tocado com insistência pelos pais e em que Miles e Gil Evans assinavam arranjos para a música de George Gershwin. “Recordo-me de olhar sempre para a contracapa”, relata, “para saber quem tocava em cada disco. Isso abriu a minha vida musical, no sentido de perceber quem eram os músicos para os quais gravitava naturalmente. Miles, John Coltrane, Cannonball, Herbie Hancock começaram a construir uma base daqueles que gostava de ouvir. E todos eles tocaram com o Miles.”
Enquanto Miles Davis, Don Cheadle surge em palco acompanhado por Wayne Shorter e Herbie Hancock, mas também por Esperanza Spalding, Antonio Sanchez, Robert Glasper e Gary Clark Jr., músicos que eram crianças, adolescentes ou (no caso de Sanchez) acabados de começar a tocar profissionalmente quando Davis morreu em 1991. Miles Ahead, depois de se disfarçar de filme de acção – num registo policial em busca das preciosas fitas que deveriam marcar o regresso em grande do trompetista aos discos –, termina com esta formação all star (acrescida de Cheadle tocando, de facto, trompete) a improvisar What’s Wrong With That, numa declaração do realizador e actor de que a música de Miles Davis continua viva através destes músicos contemporâneos, seguidores da fusão de géneros e da absoluta liberdade que preconizava para a sua criação. “Nesse momento, estamos a fazer uma ponte temporal e a dizer que a música está a avançar, com a banda sonora do Miles fazendo sempre parte das nossas vidas”, diz.
Para que a produção de Miles Ahead pudesse avançar, mesmo contando com os filhos de Miles Davis como produtores associados, Don Cheadle confessa que foi necessário procurar um co-protagonista branco que ajudasse a “garantir vendas para o estrangeiro”. “Quando digo branco”, corrige o realizador, “quero dizer internacional. Tivemos de garantir investimento estrangeiro e a presença do Ewan McGregor conseguiu-nos isso.” Sem qualquer dramatismo, Cheadle fala destes constrangimentos que afectaram, inclusivamente, o próprio guião, como a lei natural da indústria do cinema. Dizendo-se orgulhoso do filme que se estreou há uma semana em Portugal, Cheadle não esconde, no entanto, que se o financiamento lhe coubesse por inteiro “teria feito algumas coisas diferentes”.
Contas feitas, a nível pessoal Don Cheadle não esconde o efeito do filme em si: “mergulhei profundamente na música dele, ouvi temas que nunca tinha ouvido e passei a admirar ainda mais a sua passagem por este planeta.”