O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do workshop Crítica de Cinema realizado durante o Curtas Vila do Conde –Festival Internacional de Cinema. Este workshop é formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que serão publicados, periodicamente, no site do PÚBLICO e no blogue do Curtas Vila do Conde.
Em três planos-sequência e 18 minutos, Ascensão é um maravilhoso exercício cinematográfico que nos ajuda a repensar a forma de fazer cinema hoje. Realizado pelo jovem cineasta Pedro Peralta, este filme convoca formalmente uma certa linhagem da história e da teoria do cinema para nos relembrar que o cinema acontece para lá da narrativa, do argumento e do diálogo (há apenas uma fala em fora-de-campo). À segunda curta-metragem, depois de Mupepy Munatim (2012), Peralta consegue reunir três dimensões fundamentais do cinema num só trabalho: estética, poética e moral.
Com lenços à cabeça, duas mulheres fisicamente embrutecidas, enrugadas e expressão cerrada, emergem do nevoeiro que assola o cenário rural, olhando para o espectador. Ou será o contra-campo? Num travelling flutuante à Béla Tarr, que se vai aproximando, afastando e rodopiando, surge ao centro uma mulher que chora e é consolada: ainda não sabemos, mas já pressentimos a morte. Está de luto. Ouve-se um homem: “puxa!”, corta-se para um plano de detalhe e Peralta percorre, um a um, a fila de homens que puxam uma corda salientando o movimento dos braços. E eis a aclaração: um grupo de camponeses resgata o corpo de um homem do fundo de um poço e devolve-o à sua mãe.
Aludindo ao imaginário da mitologia portuguesa através de alguns símbolos – como o nevoeiro sebastiânico ou as misteriosas mulheres vestidas de negro –, o realizador cruza os universos do real e do fantasmagórico, despido de artifícios, e afirma o cinema enquanto lugar do milagre. O próprio título do filme remete não só para a elevação concreta daquele corpo que é recolhido mas também para a noção de ascetismo, tão característica em autores clássicos como Dreyer, quer através da própria expressão fílmica, quer através das questões temáticas. Deste cineasta, Peralta parece herdar ainda a religiosidade. Depois de retirado do poço, é a mãe que, aninhada no chão, vai segurar nos braços o corpo do filho, numa referência directa ao quadro bíblico da Pietà. Tal como Inger em A Palavra (1955), também este corpo voltará a levantar-se e a caminhar. Por outro lado, o olhar desalmado e desconcertante, que vemos em grande plano aquando a ressuscitação, encontra paralelo no de Johannes.
A duração dos planos corresponde à duração das acções, não havendo por isso elipses ou outro tipo de recursos que introduza alterações na percepção do tempo, e a presença acentuada da sonorização ambiente sublinha essa mesma representação directa do tempo: simultaneamente passado, presente e futuro. O filme termina com um plano do morto-vivo a caminhar para o monte até o perdermos de vista e, durante esse momento, o dia começa a nascer. A luz anuncia: é milagre.
Texto editado por Jorge Mourinha