Dalas e o perigoso rastilho do racismo
Abater polícias como forma de vingar a morte de cidadãos negros: assim vão as tensões raciais nos EUA.
Dalas, cidade americana onde foi assassinado e Presidente John Kennedy e cujo nome muitos associarão a uma série televisiva de poder e intriga, foi palco de um trágico e inaceitável acto de vingança durante uma manifestação pacífica. Cinco polícias foram mortos por atiradores furtivos, numa suposta retaliação pela morte de dois cidadãos negros, nos estados do Minesota e da Luisiana, em situações que evidenciam actos de racismo e abuso do poder policial. Tais situações não são novas, pelo contrário, há um longo historial de actos racistas atribuídos a polícias norte-americanos, e há também uma longa lista de vítimas. Há quem explique tal facto pela sobrevivência entre polícias de “métodos do passado” – é preciso não esquecer que nos anos 60 do século XX, década em que foram assassinados John Kennedy, Robert Kennedy ou Martin Luther King Jr., muito se lutou nas ruas pelos direitos civis até que os negros, à custa de muito sofrimento e mortes, acedessem a lugares que lhes estavam vedados (e até violentamente proibidos) pelo racismo e a intolerância de múltiplos poderes detidos em exclusivo por brancos. A eleição de Barack Obama como primeiro Presidente negro dos Estados Unidos constituiu o marco supremo dessa luta, simbolizado no acesso ao mais alto cargo da nação. Mas se, em termos históricos e simbólicos, essa última barreira foi de facto derrubada, isso não pôs termo à existência de discriminações raciais na sociedade americana. O pior, nos casos atribuídos a polícias, para lá da sua condenável ocorrência, é a impunidade que habitualmente se lhes segue. Seja por arquivamento de inquéritos, pela intervenção do Departamento de Justiça ou por decisão do Grande Júri (que opta por uma não-acusação, e isso sucedeu até no caso em que um polícia atirou a matar contra uma criança negra que brandia uma pistola de brinquedo num parque em Cleveland, no Ohio), polícias acusados de abusos escapam a penas criminais. Isto, num crescendo sem escapes visíveis, suscita um perigoso acumular de ódios e ressentimentos. E foram estes que agora, depois de mais duas mortes injustificadas (polícias brancos mataram dois cidadãos negros de forma suspeita, num espaço de 48 horas), explodiram num outro assassinato, agora de polícias sem qualquer associação com as mortes recentes. Foram mortos por ser polícias, da mesma forma que Arlon Sterling e Philando Castile terão sido mortos por ser negros e não por estarem a praticar qualquer crime (um estava a vender CD à porta de uma loja de conveniência, outro estava num carro com a namorada e a filha desta). Obama, prestes a deixar a Casa Branca, disse primeiro “compreender a raiva e a frustração” de muitos americanos perante as mortes de Sterling e Castile, mas após Dalas, louvou a polícia (dizendo que a “vasta maioria” cumpre a sua função de “forma notável”), dizendo não haver justificação possível para este morticínio. Hillary e Trump reagiram de forma lacónica, em tweets (ele “tweetou” um comunicado) e interromperam a campanha. O rastilho, de qualquer modo, foi aceso. É preciso apagá-lo rapidamente, antes venham coisas piores. E isso só se faz com justiça.