A nova dança chegou à galeria dos clássicos
Numa peça histórica, Maguy Marin põe em perspectiva o modo como o teatro entrou na dança contemporânea.
Não terão sido apenas o chamariz das soberbas Lieder de Schubert e o mergulho no universo de Samuel Beckett (no caso, o emblemático À Espera de Godot, 1953) a justificar a longevidade de May B (1981), há 35 anos em digressão mundial (passou nos Encontros ACARTE de 1992). O facto, invulgar na dança contemporânea, sublinhou a aura mítica da peça que marcou a confluência de Maguy Marin (Toulouse, 1951) com efervescente nouvelle danse française da década de 80. Insatisfeita com o formalismo dos corpos do Ballet du XXème Siècle de Maurice Béjart, onde então dançava, o “teatro do absurdo” do dramaturgo irlandês – na época, obteve a sua anuência para esta criação, com a recomendação de que se “interessasse mais pelos corpos do que pelos textos” – perfilou-se como o antídoto que procurava. E assim Marin encabeçou a resposta francesa ao Tanztheater de Pina Bausch e Susanne Linke.
Se a dramaturgia de May B é discretamente elaborada, o segredo do sucesso reside, quiçá, na tocante genuinidade dos dez personagens: nas suas vestes insólitas, de toucas e narizes postiços, envoltos numa poalha esbranquiçada a soltar-se dos corpos enquanto deambulam pela cena em arrastados passinhos titubeantes, são de uma enternecedora humanidade.
O anfiteatro ao ar livre, no pátio da escola pública contígua ao Teatro Joaquim Benite (interessante sinergia), arriscava certa dispersão da energia da peça, que o alarido exterior, terminado o jogo Portugal-País de Gales, à exacta hora do seu início, quase comprometeu. Contratempo que os magníficos intérpretes (três do elenco original) superaram, as indistintas silhuetas branco-sujo a despontarem no negrume cénico ao som da Winterreise de Schubert. Seres bizarros, aglomerados em fluxos de movimento uníssono, à deriva, num não-lugar. Estátuas vivas a agir como crianças idosas, ora abatidas e desgastadas, ora entregues à candura eufórica dos jogos infantis. De faces atónitas, marcham sob o ribombar das fanfarras carnavalescas de Gilles de Binche (da tradição popular belga), esboçam micro-interacções inconsequentes, danças de folclore em roda, ou grupos em conflito. Longos períodos de silêncio, rompidos por risadas sem nexo, respirações arquejantes, palavras sem direcção.
A Morte e a Donzela, de Schubert, a quase inaudível voz masculina desafinada a trautear “Jesus blood never failed me yet” (canto de um sem-abrigo, retrabalhado por Gavin Bryars, 1971) e o ambiente em tons sépia conferem um distanciamento lírico, burlesco e onírico a esta visitação livre à trama de Godot: reconhecemos gradualmente as personagens Estragão, Vladimir, Pozzo e Lucky (um homem conduz outro por uma trela; figuras sem rumo, que entram e saem de velhas malas de viagem…).
Marin destila a tragicomédia becketiana até ao âmago. Capta o timbre lacónico, o niilismo existencial, e recria-o nos seus próprios termos. A cadência performativa, circular, ecoa a própria escrita de Becket
Sobreviver 35 anos é, nos tempos que correm, fazer história. (Re)ver May B põe em perspectiva o modo como o teatro entrou na dança contemporânea e lembra-nos de onde veio a dança que se faz hoje. No final, sob a luz evanescente, um homem solitário fita o público. Entre o alheado e o perplexo, anuncia em voz sumida (a nós, a si mesmo?): “Fin. C'est peut-être la fin…”. Demoramos a acreditar que terminou. Que tudo é temporário e os ciclos se sucedem; que as vanguardas da(s) nova(s) dança(s) chegaram à galeria dos clássicos.