A UE já não sabe o que é a dignidade
Os eleitores votam com a carteira, mas há valores para além da carteira que continuam, hoje como sempre, a ser relevantes.
A discussão sobre o “Brexit” prossegue, sem dar sinais de esmorecer. Antes pelo contrário. A tempestade que ninguém esperava ainda está longe de revelar o seu comportamento futuro e as ondas de choque mal começaram a fazer-se sentir. Os avisos sobre a intensidade e a duração da tormenta que vai afectar o Reino Unido, cada um dos seus reinos constituintes e todos os seus parceiros económicos e aliados políticos e militares continuam a multiplicar-se e as vozes que defenderam a saída são hoje menos loquazes, ainda que não pareçam menos empenhadas.
Todos sabem que se avizinham tempos complicados, mas os defensores do “Remain” têm a tarefa facilitada. É o discurso político mais fácil do mundo. “Não fizeram o que eu disse, agora vai ser o fim do mundo e não há nada que se possa fazer para evitar o desastre. E, ainda que houvesse, não me cabe a mim remediar um desastre para o qual não contribuí.” É um discurso fácil e de acordo com o ar do tempo: este tempo de uma política para quem a democracia não está na moda, onde os políticos mal conseguem controlar a sua raiva quando os cidadãos falam e os dirigentes nacionais acham que não têm de assumir responsabilidades ou lideranças porque, afinal, são os mercados que mandam e eles apenas estão lá para abrirem as portas da casa quando os patrões aparecem para passar o fim-de-semana.
É significativo que, depois do período de demagogia máxima da campanha britânica (onde o “Remain” repetiu que os direitos humanos apenas existiam no Reino Unido graças à União Europeia, o que deve ter feito algumas figuras históricas britânicas dar uma volta na tumba) o debate se tenha centrado na economia e na finança, de acordo com o velho princípio de que os eleitores votam com a carteira. É significativo porque o recurso a esses argumentos prova que muitos políticos, no RU, na UE e fora dela, euro-entusiastas e euro-críticos, continuam a não perceber que algo se partiu na relação que já existiu em tempos entre uns quantos milhões de cidadãos europeus e a ideia da Europa corporizada na UE.
Até pode ser verdade que os eleitores votam com a carteira, mas há valores para além da carteira que continuam a ser relevantes e que, em certas circunstâncias, se tornam determinantes. Estou a falar de algo cujo significado muitos em Bruxelas não conhecem. Estou a falar de dignidade. Uma palavra cuja evocação faz Durão Barroso sorrir durante as viagens aéreas com que cruza o Globo para servir os seus 22 empregos. Uma palavra que faz Jean-Claude Juncker sorrir durante os interlúdios etílicos em que sonha com os 22 empregos que as indulgências fiscais que pôs em prática no Luxemburgo lhe trarão como reconhecimento da sua actividade política.
E no entanto, uma certa ideia de dignidade foi sempre uma das mais importantes forças motrizes da história, para o melhor e o pior. Milhões de homens e mulheres escolheram morrer de pé em vez de viver de joelhos em nome dessa coisa vaga chamada dignidade, que somos incapazes de definir quando a temos mas que sabemos imediatamente que perdemos no momento exacto em que no-la roubam. Essa dignidade depende da liberdade mas exige também algo ainda mais simples: o respeito que as pessoas de bem dedicam umas às outras. Para mim, o momento onde a UE mostrou o grau da indignidade a que estava disposta a chegar aconteceu na longa noite onde Tsipras foi submetido à sua sessão de waterboarding, uma sessão de humilhação levada a cabo pelo Conselho Europeu. Para mim, esse foi o dia em que a UE morreu. O dia em que o copo de cristal se partiu, sem esperança de reparação.
Muitos políticos, no RU, na UE, em Portugal, não percebem que, para além da carteira, as pessoas votam também com a cabeça, que consegue imaginar futuros completamente diferentes do presente, e com o coração, que lhes dá o ânimo para se sacrificarem no presente em troca do orgulho de se poderem olhar no espelho sem vergonha e olhar os filhos de cabeça erguida.
É porque a UE já não sabe o que é a dignidade que deixou de conseguir conquistar algo para além da carteira dos europeus.
Os símbolos dessa indignidade multiplicam-se. É Juncker dizendo aos eurodeputados britânicos com um descaramento inaudito que já não deviam estar no Parlamento Europeu (ele, que, ao contrário deles, nem sequer foi eleito para o seu cargo). É o mesmo Juncker ameaçando o RU com um divórcio litigioso (com que autoridade? com que mandato?) para aterrorizar os outros países que se atrevam a referendar a permanência na UE e os cidadãos que queiram votar contra. É Valdis Dombrovskis ameaçando cortar os fundos estruturais para Espanha e Portugal. É Schäuble ameaçando Portugal com um segundo resgate por termos a veleidade de ter um governo de esquerda, apesar de continuarmos a acatar todas as imposições de Bruxelas. São todas as pressões em defesa de sanções a Portugal, sem outro sentido que não seja quebrar a espinha a um país que, depois de andar de joelhos, teve um arroubo de dignidade e decidiu levantar a cabeça. Esta é a indignidade de que muitos europeus (cada vez mais) preferem fugir. Ainda que paguem essa veleidade com a carteira. A dignidade não tem preço. Há quem não perceba.