Angola, o MPLA e Agostinho Neto, uma história em carne viva
No uso sistemático de métodos de repressão militarizada contra grupos de civis, o MPLA igualou-se ao Galo Negro.
No decurso do processo de libertação nacional reiteradamente se despedaçaram todos os marcos de respeito pela condição humana; degradaram-se todos os padrões éticos; no seu lugar impôs-se a lógica assassina e fixou-se o direito de os “libertadores” se auto-proclamarem portadores da centelha da revolução e, em seu nome, se arrogarem o dom de executar os oponentes, bem como quaisquer outras pessoas não identificadas com a sua causa. A linha de demarcação entre a criminalidade e a não-criminalidade esbateu-se com estas acções e em muitos casos esfumou-se. Camus testemunhou estas crueldades na Argélia por parte da Frente de Libertação Nacional e, já então, ele pressentia nesta desordem pautada pela ausência de regras e valores a consagração do “triunfo do nihilismo”; ou seja, o regresso à selva, conforme teve o cuidado de pontuar, “[…] em que o único princípio é a violência”. De resto, a um jovem estudantes que lhe perguntou por que razão não dava apoio à FLN, ele respondeu: – “Neste momento estão a colocar bombas nos transportes urbanos de Argel. A minha mãe pode estar num desses transportes. Se a justiça é isso, prefiro a minha mãe”.
Uma questão incisiva nas minhas reflexões quando examino a linha de conduta dos combatentes do MPLA, da UNITA e da FNLA com as suas idiossincrasias brutalizantes, é saber um pouco das suas histórias pessoais: donde vieram, o seu meio social, a ocupação que tinham na vida civil e os traumas de ser negro numa sociedade colonial implacavelmente estratificada e desumana (“maniqueia, imóvel e feita de estátuas”, diria Frantz Fanon), inspirada na doutrina da white supremacy ou na doutrina do “despotismo” e da “obediência absoluta” imposta pelas nações colonizadoras do Ocidente às então chamadas “raças ainda menores de idade” incapazes, no conceito de Stuart Mill, de se auto-governarem. Confesso não ser um estudo fácil, ocupa inegavelmente o vértice das minhas indagações teóricas com as suas múltiplas explicações, no entanto prefiro reservar esta tarefa gigantesca para um outro projecto de pesquisa. De qualquer maneira, no estado ainda imperfeito dos meus conhecimentos, adianto desde já duas ou três premissas a partir de uma sequência de análises e de hipóteses possíveis.
À luz de centenas de comportamentos que estudei, persuado-me hoje não terem sido poucos os revolucionários do bando de Neto, bem como de outras formações insurrectas, que abraçaram a luta separatista movidos antes de tudo por necessidades materiais e não por ideais. Em muitos jovens atomizava-se apenas o desejo de escaparem da espiral de pobreza e violência presente nas ruas e bairros em que nasceram e cresceram, onde os índices de delinquência eram elevados; sem esquecer o facto de a maioria não ter tido acesso à educação escolar e não ter perspectivas de futuro por falta de oportunidades profissionais. Neles alojava-se uma grande dose de frustração e rancor, sentiam-se discriminados ou párias na sua própria terra, sem nenhuma possibilidade de ascensão social. A esperança de serem alguém e não anónimos entre milhões de indivíduos oprimidos, juntava-se a aspiração de terem comida assegurada e integrarem uma força que os protegesse fisicamente dos abusos das autoridades administrativas e policiais do Estado branco para quem o negro não tinha a mínima expressão como sujeito. Outros, num plano diferente, foram apanhados inadvertidamente pelos braços da guerra e arrastados para dentro dela. Seja como for, a questão central é esta: muito poucos aderiram à luta armada norteados por uma ideologia nacionalista. A herança familiar negativa em alguns casos, somadas as injustiças e a opressão do sistema colonial, por outro lado, criaram um caldo de cultivo partir do qual milhares de mancebos foram empurrados para um beco sem saída e para uma visão desesperada, nihilista e fanática do mundo. Despojados de identidade social (ou de uma função externa com que realizar os actos essenciais da vida), essas novas gerações não acreditavam em mais nada, excepto talvez na voz da sua consciência que lhes ditava a necessidade de se vingarem e atearem fogo ao mundo. Isto é, uma vingança sem limites na acção e na linha das chamadas utopias apocalípticas seculares, sinalizadas por componentes de destruição e esperança. Eram “homens do ressentimento”, conforme se assinalou atrás, visto que só na concretude da violência total eles entreviam uma plataforma imaginária para a sua salvação futura. As brutalidades praticadas por muitos deles contra as colectividades não-beligerantes provam como a subjectividade, resultante da exclusão social, os fez mergulhar na radicalização militante e no homicídio. Um certo número, de resto, revelou-se portador de tendências violentas antes mesmo de alinhar com a causa da emancipação nacional.
Considerar, portanto, que houve rasgos épicos na conduta de uma boa parte desses militantes, raia o exagero. Eles nunca se identificaram integralmente com a alma do conjunto social do MPLA ou com o acontecimento em si (o processo revolucionário); não se esforçaram, citando Slavoj Žižek, por materializar uma “paciente obra de amor” (o sacrifício pelo resgate da pátria); pertenciam à organização, tinham uma tarefa, mas faltou-lhes o espírito de fidelidade à causa da ruptura nacionalista, eles queriam simplesmente viver as suas vidas, mesmo colados ao rebanho, apenas os atraía o sabor da aventura desgarrada pela qual facilmente se esterilizou o processo de desconstrução ou de oposição à dinâmica colonial e se caiu, não raro, no bandoleirismo e em assaltos às comunidades civis.
Antigos maquisards seguramente se apressarão a refutar esta minha tese com factos e razões na linha dos quais tentarão demonstrar que a figura do revolucionário absurdo que aqui apresento, do estofo de um Dilai Dumbo (“Tiro”) e outros, não chegou a ser paradigma no MPLA. Dirão que os delitos registados contra as populações, além de fortuitos, não passaram de acontecimentos isolados; os seus autores não seriam mais do que uma espécie de “lobos solitários” ou de indivíduos descerebrados, malvados e sádicos que actuavam por conta própria à margem da cadeia central de comando e, por isso mesmo, nem sempre fáceis de controlar no meio de extensos labirintos de floresta e savana em que a guerrilha se movimentava. Logo associar o MPLA a estas condutas marginais, acrescentarão ainda os mesmos ex-combatentes, é erróneo, porque o establishment em Brazzaville e em Lusaka jamais abdicou, no marco das suas competências, de actuar com firmeza e castigar exemplarmente qualquer descaminho mais grave no procedimento dos seus chefes guerrilheiros.
Não concordo com nenhum destes pontos de vista. Por mais que custe admitir a verdade dos factos, os casos copiosamente arrolados neste livro provam de maneira enfática o que tenho estado a mostrar com clareza. Negá-los ou silenciá-los constitui um erro tão descomunal quanto os actos condenáveis que se cometeram. Também não é aceitável o argumento de que os actos disparatados de chefias rebeldes fazem parte do passado, estão mortos e devem ser esquecidos. A isto respondo com Massimo Cacciari, filósofo e político italiano, para quem “[...] o passado é sempre problemático e vive da memória actual, forma parte do projecto de futuro”. O acervo de informações que o passado oferece, permite-nos entender melhor e até antecipar, acrescento eu, o rumo do nosso trajecto em sociedade. Se não se conhecer o passado obscuro do MPLA na guerrilha, como interpretar as tendências mais profundas próprias da natureza deste Partido na governação de Angola? As marcas contraditórias desse antanho, com todos os seus conflitos dramáticos, continuam a ter um peso indelével nos días de hoje; as velhas atitudes e reacções de tensão e sectarismo, longe de se terem dissipado, naturalizaram-se e influenciam as escolhas das novas gerações de militantes daquele Partido em questões de ordem política, económica e social. Um fio contínuo une o passado ao presente e nós não somos senão, como diria Heidegger, “homens do intermédio, o nosso destino situa-se entre o que desaparece e o que se anuncia”.
Justino Frederico Kanhengue (“Mwihula”) é, porventura, dos protagonistas da luta revolucionária o que mais reparos negativos suscita. Se se analisar toda a sua linha de comportamento durante o conflito armado, descobre-se nele o típico personagem a quem Nietzsche qualificaria de “enjeitado”, aquele que é atingido por uma maldição e “[...] não recua mais diante de nenhuma acção”. Todos os sintomas de nihilismo comandavam os seus impulsos e humores, ele não encontrava nenhum consolo a não ser na paixão e no “prazer da destruição” e até na “[...] vontade de um instinto mais profundo, o instinto de autodestruição, a vontade de cair no nada”, ainda segundo a definição do autor de Assim Falou Zaratustra. A perfeita incarnação do tartufo sanguinolento. À frente do sector de operações da 3.ª Região, Kanhengue comandou ofensivas tácticas e operacionais nem sempre canalizadas para o combate às falanges coloniais. Não raro se entregou a incursões-relâmpago contra as comunidades aldeãs desarmadas, usando de força letal e sadismo sobre os seus habitantes. Que se saiba, diante destes buracos negros inquietantes da guerra em que os insurgentes aterrorizavam, matavam e humilhavam os civis nem uma só vez a cúpula do Movimento ditou uma sanção a Kanhengue ou sequer lhe exigiu responsabilidades. A culpa talvez fosse das vítimas, a única coisa que se fez foi embarcá-lo para a China Comunista para se ir “regenerar”. Assistido por mestres da Escola do Partido de Mao Zedong, em dois anos Kanhengue, o carrasco de civis, “morreu para o passado e renasceu para o futuro”; regressou ao convívio da sua tribo de guerreiros em Lusaka transfigurado e “sublimado” das suas “limitações históricas pessoais”. Numa palavra, “purificado” dos seus crimes. De novo se enchia a história de lendas e heróis e, no lugar de demónios, exibiam-se anjos da guarda.
Façamos agora uma radiografia sumária do comportamento político da casta dirigente. O projecto de libertar o povo da opressão colonial e garantir os seus direitos de propriedade perfilou-se no começo, na visão daqueles mandarins, uma ideia inequívoca. Entretanto, com o devir da história o plano cristalizou-se em ambiguidades e torpezas e afastou-se da sua matriz. A própria ideia de independentismo, em vez de integradora, tornou-se sectária, excludente para quem não partilhava o ideário personalista, autoritário e fortemente centralista de Agostinho Neto. Numa palavra, solapou-se o projecto de cidadania e à luz de uma linear e maniqueísta concepção de vida dividiu-se o corpo social em bons e maus angolanos. Daqui resultou que a dimensão político-partidária da violência, em lugar de se conservar à margem do social, como diria o sociólogo Gonzalo Sánchez, invadiu todos os espaços da sociedade e “[...] impôs a sua dinâmica peculiar ao conjunto”. Confrontadas, pois, com esta muralha de aço de repressão, as lutas sociais emancipadoras e o direito natural às liberdades públicas e ao compromisso associativo de protesto e de resistência cidadã perderam ímpeto e passaram a enfileirar com outras lutas no mundo que sofreram o mesmo fenómeno de degenerescência até acabarem por desaparecer diante do cilindro de “coerção e controlo exaustivo” exercido pelo Estado ditatorial de partido único sobre os corpos individuais e sobre a totalidade da população.
Sem grandes voos de imaginação, pode concluir-se que nenhum dos actores em armas da guerra colonial em Angola detém legitimidade para reclamar inocência: nem o Estado português, nem a rebelião em geral. Todos incorreram em excessos de selvajaria e agressão. O simples facto de tais acções criminosas terem acontecido, coloca todas as partes, como diria ainda Camus, diante de uma humilhação de cuja culpa ninguém se pode furtar.
Nessa desordem resultante da falta de respeito pelo direito à vida que se estendeu ao Estado pós-colonial, era patente a reprodução de Treblinka ou de Auschwitz enquanto símbolos dos piores horrores cometidos em campos de extermínio nazis. Os quais, no dizer de Imre Kertész, não acabaram em si mesmos, pelo contrário, prolongaram o totalitarismo e são, por isso, “a sua condição prévia”, o seu tronco. Os assassinos nesses campos de morte não se limitavam a agredir os prisioneiros o tempo todo, também os faziam despir as roupas e deixavam-nos nus por várias horas no transcurso das quais lhes fixavam todo o tipo de escarmentos e humilhações. Por fim, executavam-nos com um tiro na cabeça, materializando aquilo a que Adorno chama a “autodestruição da razão”.
O “desmantelamento do espaço” e a tomada de reféns entre os agricultores nativos para os recolocar em aldeamentos estratégicos e “subtraí-los ao inimigo”, não constituiu uma prática militar exclusiva do aparelho repressivo português. Também os insurrectos acossavam as populações indígenas rurais, pois, além de as caçar e aterrorizar, compeliam-nas a mudar de região com o intuito de as afastar de zonas sujeitas ao controlo das autoridades estatais e dos oponentes armados angolanos. Por meio de técnicas rotineiras de punição, o mundo social desses habitantes foi totalmente desestruturado; contra eles aplicaram-se preceitos similares aos previstos na doutrina da guerra de contra-insurreição do coronel americano Russell William Volckmann, que escreveu dois manuais – Operations Against Guerrilla Forces and Organization and Conduct of Guerrilla Warfare – inspirados na sua experiência pessoal de guerrilha nas Filipinas no combate aos japoneses em 1942 e desde logo adoptados na Coreia, na Indochina e no Vietnam pelas forças não convencionais do Exército dos Estados Unidos, e ainda pelas unidades especiais britânicas e francesas na repressão às guerrilhas nas suas ex-colónias. Pois bem, tentando mascarar os seus próprios métodos de acção, o MPLA em Outubro de 1968 denunciou através de um comunicado interno assinado pelo comissário político Mateus Cadete (“Kima Kienda”) as “acções de banditismo da UNITA” contra as populações civis. O documento relata que na área de Luma Cassai, “[…] os bandidos da UNITA obrigam o povo a abandonar os seus kimbos, [pelo que já] perderam a vida mais de duas centenas de homens”. Alimentos e mel eram os produtos mais procurados pelos destacamentos de Savimbi nas suas errâncias pela área do Lucusse. Na rota do rio Luanguinga, centro nevrálgico da zona D da 3.ª Região sujeita a disputas permanentes entre o MPLA e a UNITA, as populações da área deixaram de respirar desde 1967 ares de paz nas suas aldeias. O grupo liderado por Maginela Macanga, da UNITA, na mira de quebrar a influência do bando de Neto, raptava os aldeões nas suas lavras e forçava-os a deslocarem-se para outros espaços geográficos onde as hostes de Savimbi se acoitavam.
Apesar desta atitude, não subsiste qualquer dúvida quanto à responsabilidade do MPLA no uso sistemático de métodos de repressão militarizada contra grupos de civis. Igualou-se ao Galo Negro. Em nome da sua ideologia sacrificou centenas se não mesmo milhares dos seus irmãos angolanos à bala ou por enforcamento. Os seus pelotões de fuzilamento nunca deixaram de estar em serviço permanente. Vale a pena transcrever uma missiva do comandante Dino Kiamy aos chefes do sector 1 da 5.ª Região a recomendar que o povo do Chipelo devia
[…] imediatamente ser trasladado do seu lugar de origem para a área comandada pelo camarada “General”, pois é ali que devem procurar outras lavras. Tal população não deve estar sozinha sem o nosso controlo, senão os reaccionários acabarão por levá-la.
O colono já dizia que “o negro só anda direito quando tratado a chicote”. Tirante algumas diferenças, este era também o cautério que os movimentos de libertação nacional na maioria das vezes descarregavam em cima dos indígenas do campo capturados. Mas com uma dose acrescida: por vezes tatuavam-lhes o braço esquerdo com uma agulha incandescente; desenhavam-lhes na carne um círculo com sete centímetros de diâmetro de maneira a permitir a identificação da vítima no caso de ela fugir. Com uma marca no corpo tornava-se mais fácil a sua recaptura, tal qual se fazia com os escravos nas fazendas e engenhos do Brasil colonial e nos campos de concentração nazis. O relato de um rapazinho de doze anos, de nome Augusto Canuque, natural do sobado Caponde no rio Mianha, vale como uma metáfora para o pânico que acossava as populações. Revoltado, o menino denunciou estes estigmas no corpo e na alma depois de ter estado sequestrado por um grupo do MPLA durante os meses de Novembro e Dezembro de 1971. Logrou escapar e acolher-se à protecção da sua comunidade, em Nhonga. Ele próprio exibia no braço esquerdo um sinal de ferro em brasa enxertado pelo comandante Nacamba Kamuenha Muhongo (vulgo “Nacala”) do grupo Esperança que acampava junto ao rio Champaco, na região do Alto Cuíto. O jovem contou que aquele chefe militar já havia tatuado inúmeras outras pessoas de aldeias controladas pelo MPLA, mas que o fazia sempre com o peito esburacado pelo aguilhão da culpa; cada vez que aplicava o ferrete em alguém desculpava-se de estar a cumprir ordens dos altos comandos militares na Zâmbia. É um facto absoluto. Matava-se ou ofendia-se a dignidade dos civis por motivos bem determinados, matava-se em nome da supremacia de uma ideologia partidária e sempre sob a justificação de ser necessário matar uns tantos para salvar um milhão.
Diante destes repertórios aberrantes, sufrago a teoria do psiquiatra e antropólogo francês Richard Rechtman que pelo espaço de trinta anos estudou a barbárie do Khmer Vermelho no Cambodja. Ele argúi que os chamados combatentes carrascos (de Pol Pot e até de forças irregulares noutras partes do planeta) em geral não agem por conta própria e não exercitam o seu sadismo por capricho pessoal. “Eles fazem o que lhes pedem sem fazer perguntas”. A doutrinação psicológica que se lhes inculca nos estágios de formação política e militar só lhes tolera uma regra, ou matam ou morrem. Processo análogo se observava no MPLA e noutros agrupamentos nacionalistas armados, haja vista o exemplo de dúzias de mancebos que relatam a sua experiência de soldados e como os transformaram em máquinas desumanas
Historiador angolano
Este texto é um fragmento do livro inédito Agostinho Neto, o Perfil de um Ditador. A História do MPLA em Carne Viva, extraído do sub-capítulo “A estética da violência contra as populações levada às últimas consequências” (sem as notas de pé de página), cujo lançamento ocorrerá dia 5 de Julho em Lisboa, na Torre do Tombo, pelas 18h.