Uma semana depois do "Brexit", receio pelo futuro do meu país
Uma semana depois do referendo, ficamos numa terra de ninguém. Sem governo a funcionar, sem plano B, sem liderança. Receio pelo futuro do meu país.
Estou muito inquieto relativamente ao que está a acontecer no meu país, Escócia, e em todo o Reino Unido, após o referendo de 23 de Junho, e à possibilidade de poder vir a perder a minha cidadania europeia e, como consequência, o meu direito a viver e trabalhar em Portugal, ou em qualquer um dos outros 27 estados membros da União Europeia.
Politicamente, financeiramente, socialmente e economicamente, o Reino Unido está um caos. Existe um vazio de poder em Londres e também a possibilidade da Escócia e da Irlanda do Norte optarem por sair do Reino Unido para protegerem o seu estatuto dentro da UE.
Entretanto, os dois principais líderes da campanha “Leave”, Boris Johnson e Michael Gove, assim como muitos dos seus apoiantes, parecem ter admitido recentemente que nunca esperaram ou desejaram o resultado que obtiveram. Afinal, aparece que a sua campanha tinha mais a ver com a vontade de afastar David Cameron e George Osborne da liderança do Partido Conservador e consequentemente do país. A renúncia do Primeiro-Ministro, na sexta-feira, estragou a festa e deixou bem claro aos partidários do “Brexit” que os problemas agora seriam seus para o resolver. Além da breve aparição de Boris Johnson à saída da sua casa, afirmando que a moeda e os mercados ficariam estáveis – precisamente no mesmo momento em que o valor da libra caía fortemente em relação ao dólar e ao euro – nenhum dos principais líderes do movimento “Leave” tem sido visto desde a sua conferência da imprensa bastante discreta na manhã do dia 24. Os porta-vozes que surgiram, ou abstiveram-se de falar ou recuaram nas promessas feitas durante a campanha, quer no que respeita à imigração, investimento na saúde, acesso ao mercado único, quer até no que respeita à importância do Reino Unido accionar o Artigo 50.º do Tratado de Lisboa.
O consenso geral é de que nenhum pedido formal para activar o Artigo 50.º será – ou pode ser – efectuado, pelo menos até que o novo líder do Partido Conservador seja escolhido (o que não acontecerá até Setembro). Em todo o caso é possível, senão mesmo provável, que haja necessidade de realizar eleições legislativas para dar legitimidade ao novo governo. Só nessa altura é que o novo parlamento – a única instituição que pode adoptar leis constitucionais – estará em posição de autorizar o governo a accionar o Artigo 50.º, o que pode demorar até 7 a 8 meses. A complicar ainda mais as contas, está o facto de alguns líderes da UE insistirem em que não haverá lugar a novas negociações, formais ou não, até o Artigo 50.º ser formalmente activado; e a insistência de Westminster de que não será possível autorizar o governo a iniciar o processo de “Brexit”, sem que haja uma negociação prévia com as instâncias europeias para esse efeito. Convém referir que o parlamento britânico tem actualmente uma maioria de deputados a favor de UE, não existindo qualquer garantia que esta situação se altere depois das eleições. É sempre possível que o parlamento possa recusar a autorização, rejeitando assim o resultado do referendo. Sem autorização parlamentar, o “Brexit” não passará de uma declaração de intenções.
Boris Johnson, o ex-Mayor de Londres e ex-líder do “Leave”, disse que não há pressa em sair da UE, e que a sua preferência é negociar mais concessões para o Reino Unido, principalmente no que respeita ao direito de livre circulação de cidadãos europeus. É importante lembrar que apenas 15 dias antes da sua entrada na campanha “Leave”, Johnson escreveu na sua coluna no Daily Telegraph: “Durante os últimos anos eu tenho dito que, globalmente, estaremos melhor dentro de uma UE reformada”.
No entanto, Johnson, que foi favorito para substituir David Cameron, desistiu da corrida à liderança do Partido Conservador depois de uma troca de mensagens em que o seu deputado Michael Gove disse que o não podia apoiar. Numa decisão que apanhou quase todos por surpresa, Johnson declarou que ele próprio não é o homem certo para liderar o país durante estes momentos difíceis. Há rumores de que alguns apoiantes poderosos do “Brexit” não acreditavam que Johnson estava totalmente empenhado na causa. No seu lugar como candidato surgiu Gove, com a actual Ministra do Interior como principal adversária.
Quanto ao Partido Trabalhista, os chamados ‘moderados’ levantaram-se contra o líder, Jeremy Corbyn, pelo que é agora um partido em “guerra civil”. Corbyn fez uma campanha muito medíocre para em prol do “Remain”. Isto teve repercussões ao nível eleitoral, e as regiões onde o Partido Trabalhista tradicionalmente tem mais força – o noroeste, os Midlands e o nordeste de Inglaterra e o País de Gales – enviaram-lhe uma mensagem de desafeição inequívoca e votaram em massa para sair da EU. O voto a favor do “Leave” nestas regiões não foi tanto a afirmação de uma vontade de sair da comunidade, como um voto de protesto por se sentirem negligenciados durante anos e verem no referendo uma oportunidade de manifestar o seu descontentamento para com a elite política, talvez não estando sequer conscientes das potenciais consequências desse mesmo acto.
O golpe dos ‘moderados’ contra Corbyn é entendido como puro oportunismo político e, em vez de se envolver em conflitos internos, o partido devia estar a explorar o vazio político agora instalado para se posicionar como governo alternativo. No entanto, restam poucas dúvidas de que um partido chefiado por Corbyn não conseguirá vencer eleições. Uma sondagem recente revelou que até 29% dos eleitores que votaram anteriormente no Partido Trabalhista não vão votar nele na próxima vez.
No entanto, mesmo que o “golpe” seja bem sucedido, com a esmagadora maioria dos deputados do partido a votarem contra ele numa moção de confiança, é quase garantido que Corbyn ganhará as primárias, pela simples razão de que há uma desunião enorme entre os membros do partido (maioritariamente jovem e mais radical) que elegem o líder, o eleitorado (na sua maioria da classe trabalhadora, socialmente e economicamente conservador) e a elite partidária (na sua maioria neoliberais e políticos de carreira).
A situação na Irlanda do Norte está repleta de dificuldades. Aqui existe a única fronteira terrestre entre o Reino Unido e a UE. O desmantelamento desta fronteira “dura” foi crucial para o chamado “Acordo de Sexta-feira Santa” que pôs fim a 70 anos de conflito e mortes, eufemisticamente conhecido como “The Troubles”. Há um forte receio de que a reintrodução desta fronteira “dura”, com pontos de verificação, controlo de passaportes, alfândegas, vedações e patrulhas, possa resultar num retorno à violência. O resultado do referendo na Irlanda do Norte, onde 56% de eleitorado votou a favor da UE, levou a pedidos renovados para um “Border Poll”, ou seja, um referendo para remover a fronteira com a República o que, no contexto do Brexit, significará a sua reunificação com o sul.
Na Escócia as coisas parecem bem mais claras, mas nem por isso menos difíceis. Os escoceses votaram em força para permanecer na UE – com 62% do eleitorado a votar para ficar. O governo do Scottish National Party (SNP) foi reeleito em Maio, com quase 50% do voto popular depois de nove anos no poder, com um programa que disse claramente que será realizado um referendo relativo à independência do país caso a Escócia seja puxada para fora da UE contra a vontade da maioria dos escoceses. Agora que isto está a acontecer, a Primeira-Ministra, Nicola Sturgeon, disse que vai fazer o possível para assegurar que a vontade do povo escocês seja respeitada, e que se não há solução como parte do Reino Unido, haverá como país independente. Ela deixou bem claro que um referendo sobre a independência é a última opção, mas diz que vai avançar com os preparativos para assegurar que o país está pronto para ter esse debate antes de o Reino Unido sair da UE. Actualmente a Primeira-Ministra está envolvida em reuniões e discussões com líderes e altas entidades da UE e dos estados-membros a fim de encontrar possibilidades para que Escócia possa permanecer na UE.
Voltando à Inglaterra. A UKIP e outros partidos de direita exploraram o descontentamento e a impotência sentidos nas zonas desindustrializadas no norte da Inglaterra e País de Gales, sugerindo que os problemas – salários baixos, elevadas taxas de desemprego, escassez de casas económicas, entre outros – são em grande parte causados pela imigração. Testemunhando a partir da Escócia o desenrolar dos acontecimentos em Inglaterra, estou chocado com o quão desagradáveis estes se tornaram. Há cada vez mais notícias de pessoas cuja aparência física não se coaduna com o estereótipo do “britânico” a ser importunados e insultadas com ameaças como “go home”, assim como turistas a serem incomodados na rua e aconselhados a deixar o país.
Deste modo, uma semana depois do referendo, ficamos numa terra de ninguém. Sem governo a funcionar, sem plano B, com os dois partidos principais atolados em conflitos internos, sem liderança, sem ninguém a assumir qualquer responsabilidade. Receio pelo futuro do meu país, qualquer que seja o resultado.
Director, Contemporary Portuguese History Research Centre, Universidade de Stirling, Escócia, Reino Unido