O nacionalismo é o ópio do povo, o cosmopolitismo o ópio das elites
As elites de hoje, tal como as elites de há duzentos anos atrás, sentem-se atraídas pelo despotismo iluminado.
1. Vivemos um período histórico conturbado. Para muitos, o voto favorável à saída dos britânicos da União Europeia parece o fim de uma era cosmopolita. Talvez o rumo dos acontecimentos possa mostrar que isso é verdadeiro. Mas, se for assim, o fenómeno não é radicalmente novo. Apesar da singularidade dos tempos que vivemos, é possível traçar semelhanças e paralelismos históricos. Um período interessante é a transição do século XVIII para o século XIX europeu. Na segunda metade do século XVIII, na fase final do ancien régime, tinha emergido uma elite cosmopolita europeia. Frequentava os salões da aristocracia, de Paris a São Petersburgo. Partilhava de similares ideias iluministas e gostos estéticos. A sua língua franca era o francês, que sucedia ao latim. As línguas populares, mais tarde designadas por nacionais, eram menosprezadas como rudes e vulgares. Não eram línguas de pessoas cultas, de eruditos. A elite aristocrática e os seus protegidos sentiam-se mais próximas dos seus pares, um pouco por toda a Europa, do que do povo do seu país de origem. À sua maneira, tinham já o embrião de um sentimento europeísta de natureza elitista. A Revolução Francesa de 1789 e as revoluções liberais das décadas seguintes foram revoltas populares, instrumentalizadas pela burguesia, contra as classes tradicionalmente privilegiadas. O seu alvo foi o cosmopolitismo das Luzes e a forma de governo aristocrática e opressiva do antigo regime. As tendências políticas, intelectuais e estéticas da primeira metade do século XIX acentuaram o processo. O romantismo, um movimento literário e estético com origem em finais do século XVIII, teve implicações políticas que acentuaram o colapso do cosmopolitismo das Luzes. As línguas nacionais na sua formulação moderna, a história nacional, a identidade nacional, surgiram no meio de uma revolta contra o cosmopolitismo aristocrático — de monarquias absolutas e de impérios multinacionais —, e de formas de governo desligadas das aspirações da maioria da população.
2. As elites cosmopolitas de hoje estão numa posição similar à das elites aristocráticas de há duzentos anos atrás. À primeira vista poderíamos dizer que estamos perante elites completamente diferentes, em sociedades contemporâneas moldadas por valores democráticos, sem pontos de contacto. As actuais elites não são oriundas da aristocracia clássica. Vêm, essencialmente, da classe política que usualmente ocupa o poder, mas também dos meios empresariais, universitários, intelectuais ou artísticos (o establishment). Sob a capa das diferenças, por vezes mais superficiais do que se poderia pensar, existem semelhanças estruturais. A primeira, é a partilha de ideias políticas não nacionais e da visão do mundo que lhe está inerente. As elites aristocráticas do passado tinham um cosmopolitismo pré-nacional; as elites do presente têm um cosmopolitismo pós-nacional. Ambas são elites desnacionalizadas. A ambas desagrada a ideia de nação. A segunda é ao nível da língua. No passado aristocrático, o francês era a língua da Europa culta, da diplomacia, dos contactos internacionais, de todos os que se viam, a si próprios, como cosmopolitas. Traça uma linha divisória com o povo. Hoje, o inglês substituiu o francês nesse papel. As elites lêem em inglês, escrevem em inglês, falam em inglês, as universidades dão cursos em inglês, as conferências fazem-se em inglês, etc. As línguas nacionais são menosprezadas, novamente. Não são línguas de cultura, de ciência, nem de negócios, nem boas para ascender socialmente. O cidadão comum — pelo menos aquele que, por razões geracionais, de treino linguístico ou outras, não se revê na hegemonia linguística estrangeirada das elites —, sente-se excluído. A língua é um poderoso marcador cultural e de identidade, de sentimento de pertença, ou de exclusão.
3. Há um terceiro paralelismo estrutural, com a transição do século das Luzes para o século das revoluções liberais e nacionais, que é particularmente elucidativo. As elites de hoje, tal como as elites de há duzentos anos atrás, sentem-se atraídas pelo despotismo iluminado. Esta é uma afirmação polémica e provocatória, mas que pode ser evidenciada pelos paralelismos estruturais mais subtis. Não se trata, agora, do despotismo iluminado clássico do século XVIII, mas de formas mais sofisticadas e benignas. O seu quadro político preferencial de funcionamento não são os Estados nacionais, os quais vêem como ultrapassados, mas organizações e redes internacionais. No caso europeu, a União Europeia é a sua preferência mais óbvia. Mas não por um europeísmo participativo dos cidadãos. A instituição de uma governação tecnocrática, para bem do povo, mas onde este não participa directamente, é a sua forma de governo preferida — daí o seu ódio particular aos referendos. A ressonância com as ideias do século XVIII vem à mente. Maximiza o seu próprio poder. Minimiza a dependência do voto e das escolhas do cidadão. As elites cooptam, para a governação, grupos da sociedade civil (organismos empresariais, profissionais, ambientalistas, ONG, etc.), que supostamente dão uma lógica democrática à governação. Sejamos claros: não dão. Nenhum deles resulta da escolha democrática e individual dos eleitores. São representações de interesses e de grupos. Esta forma de governação faz lembrar as formas as lógicas corporativas pré-Revolução Francesa.
4. O cosmopolitismo de hoje desdobra-se em globalismo e multiculturalismo, as únicas ideologias aceitáveis para a elite cosmopolita. Pode levar a um maior entusiasmo pela globalização (à direita), ou a um maior entusiasmo pelo multiculturalismo (à esquerda). O cosmopolitismo, em qualquer dessas duas versões, pode ter muitos argumentos a seu favor — num mundo ideal todos seríamos cosmopolitas —, mas não contém qualquer garantia de governo democrático. Pelo contrário, na prática, tende a levar a um estreitamento da democracia. Até agora, não há nenhuma experiência histórico-política convincente que tenha mostrado que a democracia pode funcionar bem fora do quadro político do Estado. Um governo global, mesmo descentralizado, nunca será uma verdadeira democracia — provavelmente seria a governação de uma oligarquia. Não há democracia sem uma população que se (auto)identifique como um povo. Na Europa, tal como no mundo, há povos, no plural. A preferência pelo cosmopolitismo levanta a questão dos limites da democracia. Voluntária ou involuntariamente, abre a porta a uma governação tecnocrática numa versão sofisticada do despotismo iluminado. Essa possibilidade fascina as elites desnacionalizadas. Agrada, também, aos grupos organizados da sociedade civil que beneficiam desta. Ambos procuram-na apresentar como democrática. Que ambos desejem uma governação deste tipo percebe-se bem. Independentemente dos elevados valores que proclamam — e de usarem uma suposta superioridade moral contra as massas, as quais qualificam, indiscriminadamente, como xenófobas, retrógradas e avessas à globalização —, prosseguem os seus interesses e visão do mundo. Na sua faceta pior, o cosmopolitismo, tal como o europeísmo, são um disfarce da ambição de poder das elites e da sua claque de grupos beneficiários.
5. A União Europeia é um claro exemplo do problema. A integração europeia tem aí o seu ponto mais crítico, não resolvido. Quando a integração se intensificou, nos anos 1990, com a conclusão do mercado único e os avanços para a união económica e monetária, o défice democrático aumentou em similar proporção. Não foi por mero acaso. Aumentar a integração sem ter sido possível criar um povo europeu — que, infelizmente, não existe também hoje —, leva, inevitavelmente (?), a estreitar a democracia. Conforme não pode haver uma democracia sem povo, também não pode haver democracia sem partidos políticos europeus. O que acontece nas eleições para o Parlamento Europeu é que se vota em partidos nacionais, com agendas essencialmente nacionais, que depois se associam. Não há um programa de governo europeu sufragado. Também não pode haver uma democracia quando o poder está mais do lado da tecnocracia de Bruxelas e de Frankfurt, do que nas mãos dos cidadãos. Para além das vantagens de uma governação a nível europeu, hoje são também claras as consequências negativas da transferência de poderes nacionais para as instituições europeias. Face a estas, o cidadão apenas exerce um vago e indirecto controlo democrático, como ocorre com a Comissão, ou nenhum, porque estão blindadas face às suas escolhas políticas, como acontece com o Banco Central Europeu. Não é por acaso que o indivíduo comum se sente cada vez mais distante da União Europeia.
6. Nos acontecimentos tumultuosos que estão a abanar a União Europeia, as elites cosmopolitas confundem, convenientemente, causas com consequências. Olham, com alarme, o nacionalismo em crescendo um pouco por toda a União Europeia. Têm razões fundadas para isso. A tragédia europeia da primeira metade do século XX foi, em grande parte, provocada por nacionalismos agressivos. Convém não os subestimar nem idealizar. É verdade que Nigel Farage e Boris Johnson, no Reino Unido, são líderes populistas e com uma retórica demagógica. São uma espécie de contra-elite. Instrumentalizaram o descontentamento da população contra a União Europeia, a globalização e os migrantes / refugiados. O mesmo se pode dizer, embora com contornos que não são os mesmos (são mais agressivos), de Marine Le Pen em França, ou de Geert Wilders na Holanda. A isto poderíamos, ainda, juntar os populismos de esquerda de Pablo Iglesias, em Espanha, ao de Giuseppe Grillo, em Itália, com as suas próprias lógicas. Só que não foram estes, nem à direita, nem à esquerda, que criaram o terreno sociológico-político que nos levou à actual situação. Não foram os populistas de nenhum destes quadrantes que criaram a tecnocracia europeia, nem a governação com organismos da sociedade civil que contornam o cidadão, nem abriram as portas aos efeitos mais negativos da globalização, nem à permanente sensação de insegurança económica e identitária. Aproveitam-se deles. O nacionalismo não é causa do mal-estar da Europa, é consequência deste.
7. A vaga de movimentos nacionalistas que atravessa a Europa são a outra face das escolhas políticas das elites governantes e dos seus falhanços. Falharam duplamente: estreitaram a democracia, com a sua preferência pela governação tecnocrática, afastada dos cidadãos, supostamente uma boa governação; tornaram-se incapazes de criar bem-estar generalizado desde a crise de 2007/2008, pela sua preferência pela globalização de tipo (neo)liberal. A sua arrogância iluminista, de quem sabe o que é melhor, aliada a uma convicção superioridade moral dos seus valores pós-nacionais, torna-as avessas à crítica. Sentem-se com o monopólio da sociedade decente. O problema é intensificado por terem perdido contacto com o indivíduo comum. Essencialmente interagem entre si, funcionam em circuito quase fechado. Sob a sua indiferença, a classe média-baixa trabalhadora transitou da esquerda para a direita populista e / ou extrema-direita. Os sucessos eleitorais do UKIP no Reino Unido e a FN em França, não deixam dúvidas quanto a essa transferência de votos. Agora estão alarmadas, mas não fazem autocrítica. Esquecem uma lição histórica importante. No mundo de há duzentos anos atrás, o nacionalismo atraiu a população porque foi visto como libertador face a uma forma de governo aristocrática, cosmopolita e tirânica. Esquecem que este foi — e está a voltar a ser —, uma forma de protesto contra a injustiça, as más condições materiais, ou a falta de representação política. Hoje podemos estar a assistir a um processo histórico parecido de consequências imprevisíveis.
Investigador