Com a Europa de nó na garganta, britânicos decidem o lugar que querem ocupar no mundo
Incerteza é a única palavra certa sobre o desfecho do referendo à permanência do Reino Unido na UE. Mobilização dos eleitores trabalhistas e dos mais jovens serão decisivos após campanha que dividiu o país.
E ei-lo que chegou. O referendo que há meses mantém a União Europeia em suspenso, a “decisão mais importante numa geração” que milhões de britânicos têm em mãos, uma votação que divide o país ao meio e promete deixar marcas profundas na política. Mas depois de quatro meses de campanha – que mais do que acesa foi venenosa –, a incerteza sobre o desfecho é tão grande como a distância que separa a visão que cada um dos campos tem do Reino Unido e do seu lugar no mundo. Prever o resultado é um exercício de adivinhação, mas as esperanças da UE podem bem estar nas mãos de dois dos eleitorados menos mobilizados até agora – os jovens e os apoiantes trabalhistas.
Se as últimas horas de qualquer campanha são habitualmente frenéticas, as que antecederam a votação desta quinta-feira abeiraram-se da histeria. Boris Johnson, o antigo mayor de Londres que sonha com o “dia da independência britânica” e o n.º 10 de Downing Street que a saída da UE lhe poderá abrir, viajou pelo país de helicóptero. Em cada etapa, insistiu que este referendo “é a última oportunidade de os britânicos recuperarem o controlo do país”. “Se não votarmos pela saída vamos continuar presos na parte de trás de um carro que avança numa direcção incerta, para um lugar onde não queremos ir, conduzidos talvez por um motorista que não fala grande inglês”, disse, numa visita matinal a um mercado de peixe, no Leste de Londres.
David Cameron, o primeiro-ministro que há três anos e meio abriu a caixa de Pandora, preferiu o autocarro e fechou na cidade de Birmingham a campanha em que joga o seu futuro, o futuro do seu Governo, do país e da UE. “Ponham os empregos em primeiro lugar, ponham a economia em primeiro lugar”, afirmou, num discurso quase sem pausas, em que deixou um último apelo: "Não votem com base nas mentiras que vos foram ditas”, “votem a pensar no futuro dos vossos filhos e dos vossos netos”.
O ritmo do noticiário só abrandou a meio da tarde, quando o marido de Jo Cox liderou os tributos à deputada trabalhista, no dia em que ela celebrava o seu aniversário. Viajou de barco pelo Tamisa com os dois filhos, como há exactamente uma semana tinham feito todos juntos para defender a permanência do Reino Unido na UE, antes de discursar perante centenas de pessoas reunidas em Trafalgar Square. Mas as promessas de moderação que todos os políticos fizeram no dia em que a jovem estrela do Labour foi assassinada parecem já esquecidas.
Michael Gove, ministro da Justiça e um dos principais rostos da campanha pela saída, comparou os economistas que alertam para os riscos de uma forte recessão em caso de vitória do “Brexit” aos “cem cientistas alemães pagos pelo governo nazi para dizer que Albert Einstein estava errado”. “Acho que perderam a cabeça”, reagiu Cameron às palavras do seu ministro e antigo amigo. Antes, o ex-ministro da Segurança Social, Ian Duncan Smith, tinha acusado o primeiro-ministro “de mentir” quando diz que a Turquia está a anos de distância de aderir à UE. Horas mais tarde, o antigo primeiro-ministro conservador, John Major, acusou Gove e Johnson de se estarem a preparar para ser “os coveiros da prosperidade” britânica.
A batalha do Labour
Discursos que raiam o insulto e que tornam muito difícil perceber como pode David Cameron permanecer à frente do Governo, como ele garante que fará, se perder o referendo. Mas que mostram igualmente que, ainda que ganhe, vai ter muita dificuldade em voltar a unir o Partido Conservador – antes da recta final da campanha, vários deputados eurocépticos avisaram que podem desencadear uma votação interna à sua liderança se a vitória da permanência for escassa.
Um risco de instabilidade que se soma à incerteza das sondagens – elas próprias ainda a recuperar da credibilidade perdida nas legislativas do ano passado –, numa altura em que a diferença entre os dois campos é inferior à margem de erro em todas os inquéritos publicados pela imprensa. Não espanta, por isso, o nervosismo das praças financeiras, nem tão pouco o tom inflamado com que os líderes europeus fizeram um último apelo aos eleitores britânicos.
Mas não é na guerra civil instalada entre os tories que está a chave que poderá ditar o resultado do referendo. Ou tão pouco na fúria com que a ainda influente imprensa britânica se mobilizou a favor ou contra a UE – nas páginas que antes dedicava a mulheres nuas, o tablóide The Sun publicou nesta quarta-feira uma fotografia do rosto de Cameron, acompanhada de um apelo: “Olhem-no nos olhos e garantam que votam a favor da saída”.
Para os analistas, o voto que os países europeus pedem aos britânicos está nas mãos dos eleitores tradicionais do Labour, os mesmos que ainda há duas semanas se diziam incertos sobre qual era a posição do partido neste referendo. Ao contrário do eleitorado conservador, há uma clara maioria de trabalhistas a favor da permanência, mas também um número elevado que não sabia ainda se iria votar. E as sondagens indicam também que é nas zonas economicamente mais deprimidas do país, onde o Labour tem os seus bastiões históricos, que o discurso anti-imigração empunhado pelos partidários da saída recolhe mais apoios.
Acusado de ser “um eurocéptico envergonhado”, o líder trabalhista repetiu nos últimos dias de campanha que a permanência “é a escolha racional”. “Votem pelos vossos trabalhos, pelos vossos direitos, pelos serviço nacional de saúde, votem pela UE”, pediu Jeremy Corbyn no encerrar da campanha, deixando de novo o entusiasmo europeu para Sadiq Khan, o mayor de Londres: “Este é o combate das nossas vidas, vamos ganhá-lo”.
Na mão dos jovens
Mas as divisões não são só políticas ou geográficas. A “decisão histórica” que Cameron pôs nas mãos de 46 milhões de britânicos (o número total de pessoas elegíveis para votar) divide gerações. É o que acontece na família de Eleanor Lever, de 23 anos que trabalha numa produtora de filmes publicitários. Já enviou por correio o seu voto a favor da permanência, mas diz que “mudou umas 50 vezes de opinião”.
“No final votei por instinto. Mas já quase me arrependi”, diz ao PÚBLICO, a caminho do trabalho, em Russel Square (Londres). Não porque se sinta desinformada, mas porque reconhece força nos argumentos dos dois lados. “Os meus avós têm uma ideia do que é ser britânico, que está muito ligada ao que defende a campanha do ‘Brexit’, e é difícil afastarmo-nos desse legado”, explica. “O meu pai”, acrescenta, “também defende a saída da UE e ele teve sempre razão em coisas em relação às quais eu tinha uma forte opinião contrária”.
Acabou por alinhar com a maioria dos eleitores da sua geração – é na faixa entre os 18 e os 29 anos que é mais alta a percentagem de opiniões a favor da UE, logo seguida pelos eleitores que têm entre 30 e 39 anos. Mas as sondagens indicam também que estes dois grupos etários são os que menos mobilizados estão para votar, num contraste total com a população acima dos 60 (os que prometem acorrer em maior número às urnas e que têm uma opinião predominantemente eurocéptica). “Em termos gerais, quanto maior for a participação, mais hipóteses de vitórias tem a campanha pela permanência”, explicava uma análise feita no início do mês pelo jornal Financial Times a dados reunidos pelo instituto YouGov.“Uma taxa de participação de 65% ou mais é uma boa notícia” para Cameron.
Quem queria votar – e não pode – é Kierran Harram. Tem 17 anos e as iniciativas que foram lançadas para estender o voto aos maiores de 16 não passaram no Parlamento. “Não percebo que experiência de vida posso ganhar neste ano que me torne mais apto para votar”, indigna-se, ao afirmar que o resultado do referendo terá mais impacto na vida dos jovens do que na dos eleitores mais velhos. “Alguém no outro dia escrevia no Facebook, a propósito de as pessoas com mais de 65 anos votarem neste referendo, quer era como comprar um bilhete para o cinema quando se vai sair ao fim de dez minutos”, diz, entre risos. “São os jovens que vão ficar até ao fim”.
Kierran veio de Durham, pequena cidade do Norte de Inglaterra, para participar num curso de Verão da University College of London (UCL), onde dentro de um ano quer estar a estudar História. Os amigos e colegas, assegura, são quase todos a favor da UE, mas acredita que em Durham a vitória dos que defendem a saída “será esmagadora”. Na cidade, como em muitos outros bastiões trabalhistas da cintura industrial do Norte de Inglaterra, o apoio ao “Brexit” alimenta-se dos níveis de desemprego acima da média e da recente chegada de imigrantes vindos do Leste da Europa. “É uma área que é culturalmente muito resistente à mudança”, afirma Kierran, lamentando que a população mais velha “continue fixada na ideia de que o Reino Unido é uma grande nação imperial que já não existe”.
Tanto Eleanor como Kierran dizem estar mais informados agora sobre a UE do que no início da campanha, ainda que critiquem os políticos por falarem pouco para os para os mais jovens. Mas Lloyd Sowerbutts, uma geração acima, não se mostra tão optimista. Gerente de uma livraria próxima da UCL, é natural de Essex, no sudeste de Inglaterra, e diz ao PÚBLICO não estar muito confiante – nem na informação que foi passada aos jovens, nem na vitória da permanência. “O meu irmão, que nunca saiu da nossa cidade, é um grande defensor da saída e quando lhe pergunto porquê só cita as manchetes dos tablóides”, lamenta.
Licenciado em Finanças, diz que os milhões que Londres envia para a UE são uma “pequeníssima parte” do seu PIB e “um bom preço a pagar pelos direitos laborais, a liberdade de circulação e o trabalho que os investimentos europeus geram”. O seu voto – pela permanência – já seguiu há muito pelo correio. “O boletim estava na minha caixa de correio quando cheguei de uma viagem a Itália e foi a primeira coisa que fiz.”