David Cameron, o europeu

O primeiro-ministro britânico descobriu que o cenário com que nunca contou podia acontecer. A economia falhou como argumento e a imigração, que ele prometeu estancar, não pára de crescer.

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David Cameron jogue o seu destino, o da Europa e, em parte, o do resto do mundo numa só decisão Reuters

1. Se David Cameron dormiu descansado a noite passada, das duas uma: ou tem sondagens que o comum dos britânicos não conhece, ou é um “extraterrestre”. Admitindo que nasceu em Londres e que o resultado do referendo é demasiado apertado para confiar nas sondagens, não pregou olho. É difícil de imaginar alguém que, nos dias de hoje, jogue o seu destino, o da Europa e, em parte, o do resto do mundo numa só decisão, tomada em Janeiro de 2013. Cameron arrisca-se a ficar na História como o líder político que desfez o Reino Unido (a Escócia está à espera) e deu uma contribuição decisiva para acelerar a desintegração europeia.

A questão é saber o que o levou até esse lugar solitário em que se encontra. O primeiro-ministro britânico ganhou a liderança dos tories em 2005, quando o seu partido se arrastava há anos na oposição, de líder em líder, sem conseguir voltar a afirmar-se como uma alternativa nos anos da Cool Britannia de Tony Blair. Os conservadores tinham perdido o contacto com uma sociedade cada vez mais próspera e moderna, não se entendiam sobre a Europa, não encontravam uma plataforma na qual os britânicos se pudessem rever.

Pareciam demasiado velhos para o país. David Cameron trouxe o contrário disso tudo. “Compaixão e empatia era as últimas qualidades associadas aos conservadores, quando ele chegou à liderança”, escrevia a Time em 2008. Apresentou-se como um líder moderno, muito jovem, preocupado com o mundo lá fora, defendendo um conservadorismo socialmente atento, que valorizava o Serviço Nacional de Saúde e rejeitava o extremismo ideológico da Dama de Ferro. Ganhou o poder em 2010, derrotando Gordon Brown e apresentando-se como uma nova linhagem de conservadores.

Queria “desintoxicar” o seu partido, libertando-o da sombra de Thatcher e da rejeição sistemática da Europa. Mas não deixou de ser um eurocéptico, disposto a alterar o comportamento do Reino Unido em Bruxelas num sentido mais crítico e mais distante, depois dos anos de Blair. A primeira coisa que decidiu fazer deu-lhe uma péssima imagem nas capitais europeias, a começar por Berlim. Resolveu retirar o seu partido do grupo do PPE (Partido Popular Europeu, de centro-direita pró-europeu) e transferi-lo para o grupo da direita nacionalista e muito pouco amiga da Europa, sem influência no Parlamento Europeu. Pouca gente percebeu qual era a vantagem desta decisão, a não ser uma genuína desconfiança da Europa ou a necessidade de oferecer alguma coisa às bases do seu partido. Cameron não se preocupou em manter a enorme influência que Blair conseguiu em Bruxelas, graças à qualidade da diplomacia britânica. Queria apenas libertar o seu partido da armadilha europeia e fazer jus à sua maneira de pensar a liderança, pouco dada, como ele próprio dizia, a grandes visões ideológicas. A Europa estava lá e era preciso lidar com ela.

Foi um parceiro difícil quando a crise da dívida soberana se transformou na crise do euro, obrigando a União a adoptar o “Tratado Orçamental” (2012) fora do quadro institucional. Via vantagens na salvação do euro, desde que mantivesse a margem de manobra necessária para proteger a City. Chegou a pensar que iria ter problemas com os seus aliados no Governo, os liberais-democratas do europeísta Nick Clegg, mas percebeu muito rapidamente que o “inimigo” era outro: a ala anti-europeia do seu próprio partido, acicatada pela ascensão de Nigel Farage, o líder do UKIP, cujo programa se reduzia à saída da União Europeia.

Em 2012, para estancar esta tendência, anunciou que faria um referendo in/out para resolver definitivamente a questão. Em Janeiro de 2013, num célebre discurso sobre a Europa, assumiu o compromisso de convocar o referendo durante o seu segundo mandato, depois de uma negociação para alterar os termos da presença do Reino Unido na Europeu. Era um risco calculado e uma vantagem para ganhar as eleições de Maio de 2015. Nessa altura, já tinha percebido até que ponto a questão da imigração ganhava importância. Fez campanha a avisar que um regresso do Labour “significaria o regresso à imigração descontrolada”. Quando decidiu o referendo, a Europa não era uma preocupação dos britânicos, mas a imigração, juntamente com a economia e o desemprego, já começava a surgir em primeiro lugar.

As negociações com Bruxelas, em 2015, já incluíam a imigração como tema central. Prometeu aos britânicos travar a entrada de mais gente, incluindo aqueles que vinham de outros países da União Europeia, sobretudo do Leste e do Sul (por causa da crise). Foi uma negociação difícil, porque nenhum país europeu estava disposto a aceitar uma excepção num dos princípios essências da integração europeia: a liberdade de circulação e a não discriminação. A forte convicção europeia de que o Reino Unido devia ficar acabou por levar os seus parceiros a ceder, aceitando condições especiais que justificariam a suspensão desses direitos.

2. Quando entrou em Downing Street, os efeitos da crise financeira ainda se faziam sentir com força, embora as medidas mais difíceis já tivessem sido tomadas pelo seu antecessor Gordon Brown, aumentando o défice e a dívida para salvar os bancos. Aplicou uma razoável dose de austeridade nos últimos anos mas conseguiu pôr a economia a crescer mais do que a dos seus parceiros europeus e reduziu o desemprego para valores tradicionalmente baixos. “Acreditou sempre que a economia seria o tema vencedor, como sempre foi”, escreve o Financial Times. “Acabou por enfrentar um ciclone contra o establishment”, com o qual não contava. Em Setembro de 2014, a sua liderança esteve em jogo quando os escoceses forçaram a realização de um referendo in/out sobre a independência da Escócia. Esteve quase a perdê-lo, não fora o fortíssimo apoio de Gordon Brown e do Labour de Ed Miliband.

Os seus próximos acusam-no de não gastar o seu capital político com grande facilidade, deixando as coisas correrem. Mas reconhecem que ele gosta de “causas perdidas”, transformando-se numa poderosa máquina política. De repente, descobriu que o cenário com que nunca contou podia acontecer. Percebeu tarde que os britânicos estavam mais preocupados com os imigrantes do que com o desemprego. Deixou que o seu eterno rival, Boris Johnson, visse no referendo uma oportunidade para roubar-lhe a liderança. A economia falhou como argumento. A imigração, que ele prometeu estancar, não pára de crescer, o que já era previsível.

Boris apela às emoções dos herdeiros de Churchill, dispensando-se de justificar as consequências da saída. Cameron teve de voltar-se rapidamente para um discurso muitíssimo mais europeu. Lembrou aos britânicos que a história do Reino Unido faz parte da História da Europa. Defendeu a Europa como o grande multiplicador da sua influência no mundo. Traçou cenários catastróficos para uma eventual saída. Fez uma campanha incansável. Conseguiu aquilo que dele parecia impossível: apresentar aos britânicos a Europa como uma coisa boa.

 

 

 

 

 

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