“Brexit” e imigração
Será que o ressentimento da exclusão, aliado ao complexo político da perda de identidade, se vai sobrepor, no caso britânico, aos ganhos económicos trazidos pela imigração e pela integração europeia?
A campanha de saída do Reino Unido da União Europeia só ganhou ascendência quando colocou o problema da imigração no centro do debate. Até aí tinha perdido o argumento económico e até o argumento político, excepto no que diz respeito à recuperação da soberania, ligada ao controlo das fronteiras.
A livre circulação de cidadãos europeus é considerada pelos defensores do “Brexit” como uma violação da soberania britânica. Para eles, o “excesso de imigrantes” significa um peso incomportável para as estruturas do Estado, sobretudo hospitais, escolas e habitação social. As franjas mais radicais demonizam os imigrantes, acusados de viverem de benefícios sociais, aumentarem a criminalidade e favorecerem a prostituição. Estas acusações não são confirmadas pelas estatísticas oficiais. A noção de "pureza da raça", de memória infame, é o fantasma que assombra o “Brexit”.
Os extremistas têm recorrido ao arsenal habitual de argumentos xenófobos que têm vindo a ganhar adeptos na Europa nos últimos anos. O recurso sistemático a imagens anti-imigrantes tem provocado repulsa, dada a mensagem racista subliminar. O assassinato de Jo Cox, jovem deputada parlamentar de enorme prestígio, uma das estrelas do Partido Trabalhista em campanha pela permanência na UE, foi perpetrado por um desqualificado social com ligações neonazis que a baleou e esfaqueou aos gritos “Britain First!”. A atmosfera de ódio que tem vindo a ser criada certamente contribuiu para este acto miserável, ao qual a misoginia não é alheia.
A noção de soberania nacional tem sido historicamente manipulada pela extrema-direita para violar os mais elementares princípios democráticos e humanitários. Esta noção está ligada à identidade nacional, factor de conforto e orgulho das populações que não deve ser subestimado. O referendo britânico fornece uma boa oportunidade para avaliar como reagem as populações às mudanças de um mundo cada vez mais interligado, com diminuída capacidade dos governos nacionais e vastos movimentos de populações.
A população branca, inglesa, de camadas baixas e média-baixas, com reduzida educação e fracos rendimentos, vivendo fora dos centros urbanos mais dinâmicos, constitui o esteio do “Brexit”, embora as camadas médias e altas sejam igualmente atraídas, sobretudo aqueles com mais de 60 anos. A permanência na União Europeia é favorecida pela vasta maioria dos escoceses, a maioria dos galeses, parte dos irlandeses do Norte, camadas mais jovens cosmopolitas inglesas, populações mistas e de origem não inglesa. A população residente em Inglaterra representa 84% da população do Reino Unido. A população branca constitui 87% da população total do Reino Unido. A divisão política entre os conservadores e os trabalhistas está esbatida, embora o princípio internacionalista de solidariedade da classe trabalhadora do Labour ainda tenha alguma influência.
Os dados sobre a imigração no Reino Unido devem ser relacionados com a emigração. Estas duas realidades não estavam distantes uma da outra até ao início dos anos 90, quando cerca de 300 mil emigrantes britânicos equivaliam a cerca de 300 mil imigrantes. A partir do final dos anos 90, a divergência entre saídas e entradas aumentou exponencialmente, particularmente a partir de 2004, com o alargamento da UE aos países de Leste. Enquanto as saídas sofreram um ligeiro aumento que não ultrapassou os 400 mil anuais, excepto no ano de 2008, as entradas subiram para 600 mil, tendo ultrapassado esta marca nos últimos dois anos.
As últimas estimativas do Office for National Statistics para o ano de 2014 mostram 5,4 milhões de imigrantes numa população de 64,3 milhões (8,4% do total). Desses imigrantes, 3 milhões vieram da UE e 2,4 milhões do resto do mundo. No topo da lista dos países de origem dos imigrantes encontra-se a Polónia, com 853 mil, distante da Índia (365 mil), Irlanda (331 mil), Paquistão (210 mil), Roménia e Portugal (175 mil cada). A população de origem asiática com cidadania britânica não está incluída nestas estimativas. Os imigrantes estão relativamente bem distribuídos por várias regiões do Reino Unido, não se trata só de Londres.
À luz destes dados, não parece que o sentimento anti-imigrante tenha uma origem religiosa decisiva. A islamofobia existe e está bem identificada, tal como a judeofobia, mas o aumento em flecha da imigração de origem europeia (e cristã) parece estar a ter um papel mais importante, com o seu trabalho qualificado, aliás partilhado por asiáticos. O ressentimento das camadas baixas brancas inglesas, excluídas do processo de globalização, é complementado pela angústia das camadas médias e altas brancas inglesas face ao aumento da precariedade do trabalho. Essa angústia é expressa através da ideia de perda da identidade colectiva, à qual está subjacente a perda da antiga superioridade imperial. Todas estas camadas estão expostas à competição dos imigrantes. O elemento de classe tem algum peso na orientação da população face ao referendo, enquanto a origem nacional e étnica (ou racial) assume um papel importante. Daí a difícil posição do Partido Trabalhista e a divisão do Partido Conservador.
Os imigrantes não só têm contribuído para a boa prestação inglesa no quadro do (fraco) crescimento europeu, como concorrem fortemente para as finanças do Estado: pagam muito mais impostos do que recebem de benefícios sociais. Contrariamente à campanha de rejeição a que são submetidos pela imprensa populista, recebem menos benefícios sociais do que a população britânica, em termos absolutos e relativos.
Por outro lado, temos os dois milhões de cidadãos britânicos que vivem noutros países europeus. Na maior parte dos casos trata-se de reformados que não concorrem de forma produtiva para o desenvolvimento económico, mas contribuem para o reforço do consumo e da procura. Beneficiam naturalmente do acesso a hospitais e a escolas, no caso de terem crianças a seu cargo. Influenciam os preços, nomeadamente de casas, em zonas periféricas.
Este perfil dos emigrantes britânicos tem pontos de contacto com o perfil dos imigrantes no Reino Unido, que também desempenham um papel no desenvolvimento da procura, embora não tenham, por enquanto, a mesma necessidade de cuidados de saúde, dada a média etária. A diferença resulta de se tratar, no caso dos imigrantes, de mão-de-obra qualificada a vários níveis que participa no mercado de trabalho, com impacto no sistema escolar e na habitação social. Mas a qualificação dos imigrantes beneficia as estruturas hospitalares, dado o défice britânico na formação de médicos e enfermeiras. Mais, os imigrantes rejuvenescem a população residente no Reino Unido, enquanto o seu trabalho contribui para sustentar as pensões de reforma numa população com tendência para envelhecer, dada a redução da natalidade.
Chegamos assim ao nó central deste problema da imigração, particularmente sensível num país como Portugal, simultaneamente receptor e emissor de migrantes, conhecedor da enorme energia por eles investida. Será que o ressentimento da exclusão aliado ao complexo político da perda de identidade se vai sobrepor, no caso britânico, aos ganhos económicos trazidos pela imigração e pela integração europeia?
O problema é simultaneamente económico, ético e político. As vantagens da integração europeia são inegáveis, embora seja urgente a reforma profunda da União Europeia em processo de ancilosamento. Difícil é o problema do Estado num mundo globalizado, onde a capacidade de decisão é limitada e os recursos reduzidos face à complexidade crescente de funções e à tradição de submissão aos interesses das elites. Complicado é o problema das migrações, dependente de condições dos países emissores e dos países receptores, os factores push and pull decisivos para compreender os movimentos de populações.
Finalmente, como definir cidadania nos dias de hoje, com migrações maciças? É certo que ao fim de um certo período de tempo os imigrantes que decidem ficar adquirem a cidadania britânica, o que questiona a velha ideia de nação como comunidade colectiva supostamente autóctone, partilhando os mesmos valores e os mesmos direitos num determinado território. Do ponto de vista histórico, o caso britânico é dos mais abertos, com sucessivas migrações (e conquistas) de romanos, saxões, viquingues, normandos, huguenotes, holandeses, refugiados da Segunda Guerra Mundial, asiáticos, caraíbas e africanos do velho império, e cidadãos da UE que contradizem a ideia de autoctonia.
A identidade nacional, exposta, ou melhor, macerada por todas estas tensões entre o passado e o futuro, entre a memória e a recomposição étnica, vive um período de transição em carne viva expresso pelos antagonismos canalizados pelo referendo britânico. A identidade nacional resulta de um processo permanente de reprodução, acomodação e mudança, imposto por sangue novo e emoções novas, já expressas nas celebrações colectivas em torno do desporto, onde equipas nacionais exibem uma variedade de características físicas, incluindo cores da pele, aberta à noção de humanidade. É da aproximação entre estas duas noções fundamentais de identidade nacional e humanidade que depende o nosso futuro, bem como de uma melhor distribuição do rendimento.
Professor, Charles Boxer e King's College London