Arte e design: são precisos dois para dançar o tango em Lisboa e Elvas
Abaixo as fronteiras! Vivam o Design e as Artes é a primeira mostra da programação do Mude durante as obras de requalificação.
Penumbra, uma virgem para vestir e Rui Chafes a vigiar-nos. A sala ao cimo das escadas do antigo Hospital da Misericórdia de Elvas ilumina apenas a sumptuosa capa branca com uma representação da Virgem e do Menino de Alexander McQueen e Um Corpo Nu Coberto de Flores II, de Rui Chafes, que nos observa nas suas formas tanto duras quanto sensuais num nicho altaneiro. O diálogo entre a arte e o design tem muitas formas – literalmente – e esta é servida pelo dramatismo do espaço e da escolha dos motivos, mas também pelo propósito: afinal, estamos aqui porque durante mais de um ano um museu fica sem casa.
Abaixo as fronteiras! Vivam o Design e as Artes é a primeira itinerância do Museu do Design e da Moda (Mude), prestes a entrar em obras de requalificação para reabertura em Setembro de 2017. E é uma exposição em dois pólos que favorece um encontro a dois entre cidades, colecções e museus. O design de equipamento e de moda da Colecção Francisco Capelo (Mude) cinge-se ao corpo da Colecção Cachola, uma dança entre uma das mais importantes colecções de design em solo português e uma das mais relevantes colecções privadas de arte contemporânea portuguesa.
As mudanças a sério ainda não começaram da Baixa lisboeta rumo às reservas do museu de design, mas o Mude já é inquilino em duas casas – uma em Lisboa, a Sala do Risco no Páteo da Galé no Terreiro do Paço, e o Museu de Arte Contemporânea de Elvas (Mace), onde está depositada a colecção Cachola. E é no edifício do Mace que encontramos Chafes e McQueen, unidos na feliz coincidência de duas peças produzidas no ano de 1997 a pedirem leituras sobre “a representação e vivência do sagrado” numa sala revestida por um painel contínuo de azulejos que representa a vida de uma santa. E é em Lisboa que estão, por exemplo, a escultura Sagrada Família nos Degraus (segundo Poussaint) de Rui Sanches e a escova de cabelo que se torna jóia-arte de prata Mistério I – Rosário de Cristina Filipe, “talvez uma das duplas mais antagónicas na escala e nos materiais” que a comissária e directora do Mude, Bárbara Coutinho, decidiu juntar.
A consciência da acção
Arte e design. São precisos dois para dançar o tango, mas esta dupla já foi amplamente emparelhada em exposições, questionamentos e teses. Contemplação e utilidade, um debate “repetitivo e um bocadinho estéril”, diz Coutinho, que comissaria a mostra a convite de António Cachola e da subsequente relação institucional entre os museus. Andou à procura no desenho, no pensamento, na escultura, na espátula (de Philippe Starck, que muito interessou um grupo de alunos alemães que visitavam a mostra lisboeta ao mesmo tempo que os jornalistas), “do questionamento da nossa sociedade, da nossa cultura material, do nosso tempo”. Focou-se em “propor uma leitura transversal entre as peças”, independente da autoria, mas com o tempo marcado pelos anos 1980 – quando começa a colecção Cachola mas também pela “transformação muito grande de muitos dos pressupostos do design e da nossa cultura” que a década testemunhou.
“Hei-de morrer com os punhos erguidos de tanto lutar” é o que diz, em Lisboa, a frase potente do graffiti que Mauro Cerqueira captou e depois desmontou em painéis que a desorganizam e a lêem como Orrer Gue D Lutar (2009). To Buy or Not to Be, carrinho de compras em forma do sinal + de Miguel Januário (2009), o designer também conhecido como writer de graffiti Maismenos, abre a mostra em Lisboa. Seguem-se-lhe a dormência e alienação da cama Valium de Joana Vasconcelos (1998), a dor do tapete da porta de entrada com pregos Homeless, de Susana Guardado (2004), a desconstrução do casaco de Sonia Rykiel em que o trabalho final é o molde, a colagem moda de Ana Salazar ou o patchwork da Comme des Garçons e da escultura de portas gravadas de Alexandre Farto, ou Vhils. Entre Lisboa e Elvas, nesta primeira parte da programação Mude Fora de Portas, “é possível encontrar algumas linhas de força que têm vindo a marcar as diferentes disciplinas, como a consciência sobre a acção do artista e do designer na sociedade e no espaço público, que questiona, que vai para além dos seus limites”, diz Bárbara Coutinho ao PÚBLICO.
Pensar a cidade, a vivência, as artes. No pólo de Lisboa há mais instalação e escultura e pensa-se sobre o objecto e o espaço, olhando a arquitectura (o espaço aqui é desafiante, os núcleos muito juntos); em Elvas (ocupando todo o museu), as obras servem a reflexão sobre a influência da pintura no design e nas artes, nomeadamente a tradição do retrato ou da paisagem. Tridimensionalidade e bidimensionalidade, convites para olhar para o T0 Azul (1997) de Patrícia Garrido, que representa em blocos de acrílico em vários tons do céu as dimensões de um mini-apartamento que a artista medira e fotografara, por exemplo, ou o tríptico negro Blind Image #200 de João Louro que obriga a memória a resgatar os nenúfares de Monet.
Lisboa e Elvas, respectivamente, alguns momentos de encontro com peças das duas colecções em que “o curador tem muita sorte”, admite Bárbara Coutinho. Estamos em Lisboa, antes de partir para Elvas, a meio caminho entre o T0 e a Vertical Home (1994) de Andrea Branzi, designer que propõe que durmamos, comamos, leiamos e trepemos paredes acima na ocupação do espaço doméstico vertical. Uma vida em beliche e o espaço que nos une, que nos separa, mas sobretudo que se corporiza na emblemática peça de José Pedro Croft, Sem Título (1995) mas com muita semiótica naquelas duas cadeiras (Olaio) e no paralelepípedo aberto de gesso branco que materializa o ar que nos foca num diálogo.
Há obras que nunca tinham sido mostradas (Antes e Depois #4 de Miguel Ângelo Rocha, o coordenado Dries van Noten de 2000 ou o Biombo de Leonaldo de Almeida) e justapõem-se 30 anos de criação. Mais de 125 peças de quase 100 autores de diferentes nacionalidades, muitos portugueses, a tocar até meados de Setembro temas como a reutilização dos objectos e materiais, a reevocação da história da arte, da arquitectura, do design, ou a crítica social, além do mais evidente: o gesto, a acção, a transcendência do ser humano em relação ao meio.
A exposição tem vidro, cerâmica, equipamento, instalação, pintura, ou fotografia (Edgar Martins, da série The Acidental Theorist, 2006, ou Macrocefalia, de João Maria Gusmão e Pedro Paiva) e vídeo (José Maçãs de Carvalho, Gabriel Abrantes). Em Elvas, a sala inicial tem Fernando Brízio e Jean-Paul Gaultier, mas logo nos coloca num Alentejo sem fim – o horizonte à vista, recto mas ondulante, no Desenho (2009) de Diogo Pimentão em que fósforos queimados se inscrevem na parede, ou nas canetas Bic de Dalila Gonçalves que se arqueiam conforme a quantidade de tinta que encerram em Amontoar em Carga e Descarga (2015). A paisagem, portanto, tema central da pintura desde sempre, a lâmpada fluorescente de Igor Jesus (Uma Coisa Nunce Existe só, 2012) a iluminar a sala em que uma cerejeira despida é a estrutura central da estante Piccolo Albero de Andrea Branzi – e quando nos cruzamos, um piso acima, com a mesa de Starck que usa, espanto no homem do metal, um tronco de árvore sob o tampo, a Boboolo de 1985, o círculo da vida e da natureza morta na arte e no design parece completar-se.