Torcionários, mapuches e a maioria silenciosa: bem-vindos ao Chile

Até domingo, o FITEI vira à esquerda para a América Latina e mostra o que pode o teatro quando decide falar alto num país demasiado habituado ao silêncio. Dois espectáculos, a mesma vontade de intervir: El Senõr Galíndez e Los Millonarios

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El Señor Galíndez foi a primeira produção do Teatro Amplio, em 2013
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Los Millonarios aborda a difícil questão mapuche, a maior maioria indígena do Chile

A não ser quando já conhecem o texto, um clássico absoluto do teatro de combate latino-americano que o dramaturgo e psicoterapeuta argentino Eduardo Pavlovsky publicou em 1973 e que lhe custou a hostilidade declarada da ditadura militar (ou, claro, quando antes de se sentarem na plateia leram artigos tão dados ao spoiler como este que ainda só vai no início), os espectadores de El Señor Galíndez riem-se até ao momento em que os simpáticos senhores em cima do palco, aliança no dedo e bigode saído desses inultrapassáveis anos 70 que tanto sangue puseram a correr de uma ponta à outra do continente, fazem o seu coming out como torcionários de um regime que podia ser qualquer outro – mas neste caso é o de Augusto Pinochet.  

Maneira nada amistosa de aterrar no Chile, o murro no estômago que Antonio Altamirano tratou de trabalhar de modo a atingir o espectador na sua máxima violência, e a aproximá-lo da experiência também inultrapassável que terá sido, para sucessivas gerações de chilenos, perceber subitamente que o simpático avô de aliança no dedo cheio de rebuçados para dar aos netos, ou o simpático vizinho de bigode sempre disposto a segurar a porta, teve durante anos uma vida dupla como funcionário pago pelo Estado para torturar e fazer desaparecer pessoas. É o passado, sim, mas para muitos efeitos também o presente de um país que o FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica visita duplamente nestes últimos dias da sua 39.ª edição, aprofundado um contacto que programas como o extinto Próximo Futuro, da Fundação Calouste Gulbenkian, tornou regular: esta quarta-feira e quinta-feira no Teatro Carlos Alberto com este El Señor Galíndez que constituiu a estreia do Teatro Amplio de Antonio Altamirano, e domingo no Cineteatro Constantino Nery com Los Millonarios, texto e encenação de Alexis Moreno para o Teatro La María, a premiada companhia que o mesmo fundou em 1999 com a actriz Alexandra von Hummel.

Não é um salto assim tão quântico, este que vai da violência de Estado dos anos mais sangrentos e mais mortais da ditadura militar à violência simbólica que mantém os mapuches, a maior comunidade indígena do país (um décimo da população total), perpetuamente à margem do sistema, e, mais cinicamente ainda, à mercê do instinto para o lucro de donos daquilo tudo – sim, também existem do outro lado do mundo, e como… – do género dos advogados de Los Millonarios. O Chile, argumenta Antonio Altamirano ao PÚBLICO, é o contínuo de violência que permite a uma figura como Michelle Bachelet, a actual Presidente da República, permitir que se torturem mapuches à luz das mesmas leis anti-terroristas que permitiram aos agentes da ditadura militar torturá-la a ela. Ou, como escreve o colectivo do Alexis Moreno no programa de Los Millonarios, um país “mais classista, racista e ignorante” do que querem crer os chilenos.

Uns e outros, Teatro Amplio e Teatro La María, querem falar disso – em público. Não existem aliás para outra coisa, ainda que esta seja missão difícil, por vezes até impossível, num país onde as pessoas evitam “dizer o que têm a dizer na cara” e passam a vida a segredar (“Sou uma excepção”, reconhece Altamirano). “A ditadura não acabou em 1989 – ficou-nos no corpo. Na maneira como nos relacionamos, no medo constante de dizer o que pensamos”, diz, para explicar porque é que em 2013 a sua companhia não só achou que uma peça como El Señor Galíndez continuava actual como concluiu que na verdade não havia forma mais afirmativa de retomar o teatro como lugar de denúncia. “Em 2013 cumpriam-se os 40 anos do golpe de Estado e por mais incrível que te pareça multiplicaram-se as homenagens a militares que participaram na ditadura. Pareceu-nos que fazia mais sentido do que nunca recuperar este texto que marcou uma época duríssima – uma bomba explodiu no Teatro Payró quando a peça se estreou, o Pavlovsky acabou por ter de exilar-se em Madrid… – e fazer com ele um exercício de memória histórica”, desenvolve Altamirano.

Hoje, 40 anos depois, sabemos mais do que sabia Pavlovsky quando escreveu El Señor Galíndez – que quem torturou ficou impune, pôde seguir com a sua vida e talvez trabalhe no supermercado da esquina mais próxima, se não tiver amealhado dinheiro suficiente para fugir para os Estados Unidos –, mas em parte era já essa a ferida em que a peça punha o dedo. Os torcionários eram pessoas normais, com família e amigos; pessoas que a meio da semana, num dia de trabalho como os outros, sonharam com passeios ao domingo e que em semanas mais difíceis tiveram, como milhões de funcionários de classe média que vieram antes e depois, um medo estúpido de perder o emprego.

A encenação de Antonio Altamirano trabalha justamente nessa zona da normalidade – e é isso que a torna tão violenta, mesmo que a tortura permaneça sempre fora de cena. Uma questão de efeito, mas também de verosimilhança, reforçada por um minucioso trabalho de adaptação do texto ao contexto chileno que foi acompanhado pelo jornalista Javier Rebolledo, autor de investigações pioneiras sobre a banalidade do mal pinochetista, La Danza de los Cuervos: el destino final de los detenidos desaparecidos (2012) e El Despertar de los Cuervos: Tejas Verdes, el origen del extermínio en Chile (2013). Dos seus livros, e das conversas que teve com a equipa do Teatro Amplio, veio o chão aos quadrados pretos e brancos que para muitos presos políticos é a única memória concreta do lugar onde foram torturados, um lugar onde continua a ser insuportável voltar: “Houve espectadores que saíram antes do fim por não conseguirem lidar com o facto de terem passado uma hora a rir-se com estas personagens sem perceberem quem elas são. E outros que saíram porque se lembram demasiado bem destes quartos, destas figuras. E claro, também ter-se-á sentado na assistência a maioria silenciosa que foi cúmplice: a ditadura chilena só durou tanto tempo porque pôde apoiar-se em todos os que sabiam que se passava alguma coisa mas não disseram nada.”

É uma história muito latino-americana, como todas as que o Teatro Amplio quer contar (Casco Azul, a peça mais recente da companhia, põe quatro capacetes azuis chilenos no Haiti, a sublinhar com marcador fluorescente a mentira tantas vezes repetida da união do continente: "não passa de um slogan"), e uma história da qual o Chile, com o seu pesado “passado de vida dupla”, não saiu ainda verdadeiramente, insiste Altamirano. Mas também “é a história actual do Médio Oriente, onde os golpes de Estado e as ingerências externas se sucedem” e a tortura é só mais um trabalho como outro qualquer, talvez apenas um pouco mais sujo.

Sem paternalismo

Também é sujo o trabalho dos advogados inventados por Alexis Moreno para defenderem – não por amor à causa, mas por dinheiro – um réu acusado de triplo homicídio e violação em Los Millonarios, outra peça construída bem em cima da realidade de um caso ocorrido no mesmo Chile de 2013, momento especialmente explosivo dos protestos contra a violência de Estado sobre a minoria mapuche (o assassinato de um casal em território reclamado por aquela comunidade, e que resultou na condenação do xamã Celestino Córdova a uma pena de 18 anos de prisão). Onde em El Señor Galíndez era a política que dividia um país ao meio, entre a esquerda e a direita, aqui são as fracturas de classe e de raça que roubam o palco, amplificando não só o discurso repressivo que tem sido política oficial desde a independência (a conquista da Araucânia, consumada em 1881, reduziu a população mapuche de 500 mil para 25 mil no espaço de uma geração) como o desprezo com que a generalidade dos chilenos olha, sempre de cima para baixo, os indígenas. Um desprezo que é materialmente documentado no espectáculo por dezenas de recortes de imprensa e citações de altas figuras do regime e da sociedade civil, recolhidas ao longo de um ano e meio de investigação – do deputado liberal Eduardo Matte, que ainda no século XIX proclamou que os donos do Chile haveriam de ser “os donos do capital e da terra” e “o resto é massa influenciável e vendável”, a declarações bem recentes do historiador Sergio Villalobos, para quem na melhor das hipóteses os araucanos dão “excelentes jardineiros”.

A questão mapuche é um tema novo para o Teatro La María, ainda que "conceitos como pátria, identidade, violência e fracasso se tenham intrometido em todos os espectáculos da companhia", como explicam na sua nota biográfica. Por email, Alexis Moreno conta ao PÚBLICO que estava à procura de "um tema em que o estado e a história cultural do Chile estivessem embebidos para, a partir daí, denunciar a hipocrisia de um país e a perversão do sistema actual". Não que o Chile, ressalve, seja um país mais viciado do que os outros: "O meu país é como todos: cruel, xenófobo, hipócrita, ignorante e indiferente. E era esse país que esta história devia contar, sem paternalismo."

Em Los Millonarios, o Chile é precisamente contado pelos tais "donos do capital e da terra" cujo património a ditadura de Pinochet salvou das nacionalizações do anterior governo de Salvador Allende. Mas nesses advogados sem princípios está também espelhada a crueldade "inconsciente" da maioria, um traço indelével dessa "história cultural" que o Teatro La María quis escalpelizar em palco: "Os milionários somos todos – sem o poder económico, claro, que no meu país está concentrado em apenas 1% da população, acreditas? –, porque muito do que se diz nesta obra eu já me ouvi a dizer, tal como o ouvi dizer a minha família, os meus amigos, em todo o lado." Daí que o mapuche, que está no centro da intriga da peça, Erwin Cayuqueo, permaneça até ao fim um protagonista sem corpo e sem voz. É um statement da encenação, confirma Moreno: "Esse corpo, esse real, ainda é negado, ainda não é assumido pelo Estado chileno; hoje em dia, é uma presença demonizada, associada a grupos terroristas e a gente cruel." Mas a questão mapuche, para o Teatro La María, é apenas a ponta de um enorme icebergue num "país que não consegue resolver este assunto nem nenhum outro assunto relevante para a sociedade".

O classismo e o racismo do Chile, lamenta Moreno para fim de conversa, são definitivamente "incorrigíveis": fazem parte "da narrativa sinistra de um país que está morto desde o golpe militar". E de facto partido ao meio: "Os milionários para lá, os outros para cá. Dois países, um feito para os que concentram o poder económico, cultural, e até artístico, outro para o resto, para esses invisíveis como o mapuche humilhado da nossa comédia negra."

Que seria de facto apenas uma comédia negra, se não fosse também a realidade. “Este é o texto mais obscuro e menos amigável que já escrevi”, confessou Alexis Moreno ao diário La Tercera. Totalmente indicado quando se acha – como acha Antonio Altamirano – que o teatro não deve ser um lugar de onde se possa sair como se entrou.

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