Olhos nos olhos com o Chile de Pinochet
Escuela, a peça de Guillermo Calderón que esta sexta-feira chega a Lisboa via Próximo Futuro, é uma história secreta da violência muito latino-americana com que a esquerda chilena acreditou poder matar a ditadura de Pinochet à queima-roupa. Mas também é a história de um teatro disposto a fazer o que a democracia boicotou – justiça, e pelas suas próprias mãos. Por contraponto, e depois de tantas visitas, apetece perguntar ao teatro português: de que é que tu estás à espera?
Dois anos, justifica-se o mais internacional dos novos dramaturgos e encenadores chilenos, é idade mais do que insuficiente para que possa recordar-se do som e da fúria dos dias que se seguiram ao 11 de Setembro de 1973 – mas entretanto os dias passaram e transformaram-se em meses, em anos, em décadas, em vidas. Guillermo Calderón teve duas – uma em ditadura e outra, a mais recente, em democracia. Continua, agora que já passaram mais de 40 anos sobre o golpe que enterrou a experiência de governo popular de Salvador Allende, sem grandes certezas sobre qual delas lhe parece mais habitável, como confessou ao jornal La Segunda dias antes da estreia de Escuela em Janeiro de 2013, no festival Santiago A Mil: “De certa forma a democracia é mais cruel do que foi a ditadura, porque em última instância durante a ditadura pelo menos havia uma ilusão.”
Escuela, que chega a Lisboa esta sexta-feira via Próximo Futuro, o programa de cultura contemporânea da Gulbenkian (até segunda-feira, dia 8, no Teatro do Bairro), à frente de mais um pequeno contingente de teatro chileno, é a história dessa ilusão – à sombra devastadora da desilusão que se seguiu, pelo menos para os que, como as cinco personagens da peça de Calderón, acreditaram poder matar a ditadura de Pinochet à queima-roupa, sujando conscientemente as mãos na violência da guerra psicológica e no sangue da luta armada. Disso sim, Calderón já se recorda: “Na minha família havia pessoas que estavam comprometidas com a luta contra a ditadura militar. Eu estava a acabar o colégio [liceu] e fiz parte da geração dos movimentos estudantis, que no final dos anos 80 estavam extremamente activos. Confrontávamo-nos permanentemente com a violência policial nas manifestações – e ao mesmo tempo, paralelamente, muitos jovens estavam a preparar-se para a guerrilha, na clandestinidade. Mas nesses anos todos os chilenos estavam expostos à violência. Fazia parte do quotidiano: num dia morria uma pessoa, no outro rebentava uma bomba ao fundo da rua”, conta ao Ípsilon por telefone a partir de Santiago do Chile, cidade a que continua a regressar no final das suas agora bastante recorrentes estadias nos Estados Unidos e na Europa.
É como se não conseguisse sair dali – o Chile é o seu passado, e o passado marcou-o “para sempre”. Tornou-se no presente e no futuro de Guillermo Calderón, tanto quanto ele o vê daqui – olhos nos olhos, sem óculos escuros.
Geração perdida
No caso de Escuela, não havia mesmo como escapar a esse passado – para assinalar os 40 anos do golpe de Estado, o festival Santiago a Mil encomendou-lhe uma obra que examinasse a ditadura, e que em certo sentido continuasse o trabalho iniciado mais subliminarmente uns anos antes, em peças como Neva (2007) ou Diciembre (2009), que também vimos por cá, e definitivamente assumido em Villa + Discurso (2011), a sua última visita ao Próximo Futuro. É um trabalho cada vez mais político e cada vez mais radical – a continuação de uma guerra, só que por outros meios. Não suporta a ideia de voltar a ver políticos pinochetistas, políticos “que são a encarnação do mal”, a saírem das suas peças em paz, e a irem beber um copo a seguir, como aconteceu depois de uma representação de Neva, a sua primeira reflexão sobre o papel do teatro em tempos de cólera como os da Guerra do Iraque (ou, no caso, da Revolução Russa). Foi por causa dessa visão infernal – a visão de um teatro absolutamente inútil, por ironia o próprio tema da peça – que decidiu “radicalizar” ainda mais o seu trabalho, contou ao New York Times: “Talvez isso me leve a um beco sem saída, porque haverá um momento em que não poderei ser mais radical. Mas esse episódio obrigou-me a ser mais abertamente político.”
É impossível imaginar um político pinochetista a sair em paz de Escuela e a ir beber um copo a seguir – esta é a peça em que as personagens de Calderón discutem, na tão perturbadora quanto absurda linguagem técnica de uma célula da esquerda radical do final dos anos 80, se a melhor maneira de matar um pinochetista é enfiar-lhe um tiro na cabeça ou nas tripas. Não quer dizer que Calderón se tenha tornado um terrorista – quer dizer que para ele o teatro continua a ser um dos poucos campos de batalha onde ainda é possível derrotar a ditadura, já que institucionalmente essa é uma guerra perdida. “Trabalho sempre sobre temas políticos porque cresci com uma ditadura que continua presente sob muitas formas. Era suposto que Escuela fosse sobre o início dessa ditadura, mas a mim interessava-me mais trabalhar sobre o durante, sobre esse tempo em que os chilenos não tinham a certeza de que o ditador ia deixar o poder e em que uma geração de jovens decidiu derrotar a ditadura através da luta armada”, diz ao Ípsilon.
É a nossa primeira pergunta, mas temos várias. Continuamos a aprender com Guillermo Calderón desde que em 2009 o Festival de Almada nos fez entrar no seu teatro de combate através de Diciembre, peça em que o passado de violência do Chile (no caso, o mito fundador, e regularmente retomado, da guerra com a Bolívia e com o Peru) já era o seu futuro (passava-se no Natal de 2014, este que ainda não vivemos). Escuela, pelo contrário, é o passado ali por volta de 1987/1988 – instantes antes do plebiscito organizado pelo regime que permitiu a entrada tranquila da democracia, mas também (e esta é a parte verdadeiramente violenta para Calderón) a saída tranquila de Pinochet, directamente do Palácio de la Moneda para a sua cadeira blindada de senador vitalício. Encapuzadas, de óculos escuros, para sempre anónimas, para sempre clandestinas, as personagens da peça ainda não sabem o que vai acontecer a seguir – não sabem que o céu vai ficar amarelo, que o barco vai afundar, que vão rir-se mas sem vontade, e que assim será o futuro. Para sempre.
Oficialmente, argumenta Calderón, é como se estas escolas informais de vão de escada que durante anos ensinaram militantes de esquerda a matar e a morrer pelo Chile nunca tivessem existido. “É fascinante pensar que no final dos anos 80 caminhavam pelas ruas do Chile pessoas que estavam a preparar-se para uma grande batalha contra a ditadura que nunca chegou a acontecer – e para uma alegria que nunca chegaram a ter. E é ainda mais fascinante pensar que essas pessoas, que agora têm 40, 45 anos, continuam a caminhar pelas ruas do Chile sem que saibamos quem foram e o que fizeram. É como se o país tivesse uma vida secreta – e na hora de recordar os 40 anos do golpe, foi essa vida que eu quis investigar”, diz ao Ípsilon.
O que descobriu, depois de muitas leituras e de muitas entrevistas – “Há imensa documentação, mas para nós o essencial foram os testemunhos das pessoas que estiveram implicadas, porque interessava-nos sobretudo a experiência emocional” – corresponde, em certo sentido, a uma geração perdida. É essa a parte mais terrível deste segredo: a derrota foi outra forma de desaparecimento, um desaparecimento que nem sequer pode constar das estatísticas oficiais das vítimas da ditadura (mais de 40 mil, entre as quais 3.065 mortos ou desaparecidos, concluiu em 2011 a Comissão Valech), que nem sequer pode ser tema de conversa porque o que estas pessoas fizeram continua a ser, para todos os efeitos, ilegal, mesmo com a atenuante póstuma de ter sido feito em nome da resistência a um poder comprovadamente criminoso. “O sentimento predominante destas pessoas é a dor profunda da derrota – a democracia esmagou completamente aquilo que sonharam para o Chile, por um lado porque a amnistia impediu que as violações dos direitos humanos cometidas pelo regime militar fossem julgadas, e por outro porque não houve verdadeira transformação do sistema político e económico instaurado pela ditadura. Mas também encontrei orgulho em algumas destas pessoas, por sentirem que a longo prazo a luta que fizeram foi importante para derrubar Pinochet”, conta-nos.
Nada o impressionou tanto, porém, como a descoberta de que os termos em que se fez a transição para a democracia condenaram estes ex-militantes – alguns filiados em partidos ainda activos, como o Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), outros ligados a facções radicais de organizações entretanto extintas, como o Movimiento de Acción Popular Unitaria (MAPU) – a uma espécie de morte em vida: “Estas pessoas sentem-se completamente esquecidas, completamente apagadas da história política do país. Completamente à margem.”
Algumas têm a idade dele.
Uma história da violência
Temos outra pergunta para Guillermo Calderón – “é interessante” que perguntemos, responde ele (e de repente transformamo-nos numa personagem de Escuela: também estamos a aprender…), porque o diabo está exactamente nesse detalhe. “Sim, o Museu da Memória e dos Direitos Humanos [inaugurado em 2010] conta a história destas pessoas – como vítimas. É mais conveniente para a História, talvez até para elas próprias, recordar a resistência à ditadura como um movimento social maioritariamente pacífico ou de autodefesa. Mas, para mim, tornar a oposição ao regime mais pura, mais santa, do que realmente foi não é fazer-lhe justiça”, explica. Estão mais perto disso os pequenos memoriais que movimentos políticos comprometidos com a luta armada como o MIR e o MAPU criaram em centros de detenção, tortura e extermínio como a sinistra Villa Grimaldi (o que fazer com esses lugares era, de resto, o tema de uma das duas peças que Calderón trouxe em 2012 à Gulbenkian, Villa): “Ao lembrá-los como militantes políticos e não apenas como vítimas que vinham inocentemente a caminhar pela rua quando foram assassinadas, esses memoriais dignificam-nos. Parece-me mais justo. Merecem ser recordados como seres humanos complexos que morreram no contexto de um combate político duríssimo.”
Merecem, insiste, o mesmo “reconhecimento nacional” a que tiveram direito os políticos que assistiram ao terror de Pinochet de longe, no relativo conforto físico e moral do exílio, enquanto estas pessoas faziam o trabalho sujo que alguém tinha de fazer. É uma ideia difícil de defender no Chile, diz, um país onde só a violência do Estado parece ser legítima: “O reconhecimento é impossível, porque estas pessoas estão manchadas pela violência. O meu argumento é que temos o direito de julgar politicamente os métodos com que estas pessoas trabalharam, mas não temos o direito de as eliminar da História. E acredito que isso vale não só para os militantes que morreram ou que desapareceram mas também para os que continuam vivos.”
É aí, justamente, que Escuela quer chegar: à parte em que o passado se torna presente, e em que os encapuzados do final dos anos 80 são os encapuzados destes anos 10 que continuam a querer derrubar a ditadura. Sim, ela ainda está de pé – em domínios da vida pública impossíveis de ignorar, como o do sistema de educação, que desde 2011 tem sido duramente contestado nas ruas do Chile (voltou a acontecer há dias, em Valparaíso, como mostram as imagens, bastante gráficas, feitas pela Reuters a 28 de Agosto). “Intriga-me muito a relação do Chile com a violência, porque a violência institucional, oficial, está muito legitimada. Queria perceber como é que os chilenos vêem a violência de sentido contrário, a violência da oposição à ditadura: muitos na altura apoiaram as bombas que os grupos de esquerda punham nas torres eléctricas para cortar a luz em todo o país, por exemplo, mas hoje ninguém reconhece que apoiou, ninguém está de acordo”, nota.
É “o tipo de contradição” que lhe interessa explorar. Assim como lhe interessa explorar a contiguidade – até iconográfica – dessa história de violência passada com a história da violência presente. Alguns dos manifestantes que agora se confrontam com a polícia nas ruas do Chile democrático estão encapuzados, como os militantes de extrema-esquerda dos anos 80 (e não é só no Chile, interrompe-se Calderón, basta ver as Pussy Riot) – e, como eles, acreditam que o que sobrou da ditadura não se pode reformar, tem mesmo de morrer. O próprio nome da peça, Escuela, faz a ponte entre esses centros improvisados de formação em armas, explosivos, guerra psicológica e vida na clandestinidade e a instituição pública que se transformou, 20 e tal anos depois, no alvo mais visível (e mais simbólico) do protesto político. Calderón já lá tinha estado, em 2008, com Clase, em que um professor ficava sozinho na sala de aulas com uma aluna, enquanto lá fora os outros se manifestavam contra o sistema educativo: “Nos últimos anos, a educação tornou-se a grande questão política no Chile. Interessa-me que o meu teatro dialogue com a rua, que contribua para o debate”, justifica.
Mas há outro motivo para ter voltado à escola – é uma posição em que gosta de se pôr como espectador. “Assistir a estas aulas em que se ensina a matar é muito incómodo. Como espectador, eu não quero necessariamente aprender como se faz. Mas estou no teatro… E então ir ao teatro implica-me verdadeiramente: saio de lá sujo, a achar que aprendi uma coisa que não queria ter aprendido, mas que tenho o dever de aprender porque faz parte da História.”
Aprendamos, devagar, como quem junta sílabas para aprender a ler: “Isto é uma bala. Uma ba-la. Uma bala está dividida em três partes. Aqui em baixo está o fulminante, aqui no meio está o explosivo, e aqui na ponta está o chumbo. Esta é a parte que mata”…
Fazer escola
Há aulas mais difíceis do que outras na Escuela de Guillermo Calderón. É mais fácil subtrair 33 minutos à hora marcada para os encontros clandestinos do que aprender a abrir muito a boca no momento de disparar. É mais fácil decorar a letra do hino da Frente Sandinista de Libertação Nacional ou da Balada de Ho Chi Minh do que “cortar o cabelo, emagrecer, deixar crescer o bigode, ir para a província, andar com documentos falsos, atravessar a cordilheira de burro, não ir a funerais, nunca mais veres a tua filha”. É mais fácil morrer do que saber o que dizer quando por engano se matar – se não se matar de propósito.
Para os actores de Calderón, difícil foi aprender a representar sem ver – com a cara tapada, como os militantes da altura, e não só por uma questão de verosimilhança. “Quis que cobrissem as caras porque isso faz parte do segredo: nunca conhecemos estas pessoas – estas pessoas que, como diz uma das personagens da peça, escolheram arruinar a sua vida em vez de irem ao cinema, de se apaixonarem, de jogarem raquetes –, nunca as iremos conhecer. Não vermos quem são também nos obriga a projectarmo-nos nelas, um mecanismo teatral que eu acho determinante. Claro que para os actores foi terrível – dependem imenso da cara, e não podendo usá-la passaram a depender totalmente do corpo e da voz. Mas no fim acabaram por dizer-me que ter a cara tapada os protegeu emocionalmente.”
Não que tenham medo – o teatro chileno, concorda Calderón, nunca tem medo. “Sim, é um teatro muito político – e quando não é político não é levado a sério. Faz parte de uma tradição antiga, que remonta aos anos 60 e que fez escola, mas tenho outra explicação para isso, mais pessoal: como as instituições do país foram incapazes de tratar com justiça as violações dos direitos humanos e o trauma da ditadura se mantém vivo até hoje, tem de ser a cultura a encarregar-se disso. Não é uma forma de curar o trauma, mas é uma forma de continuar a combater. E de dar sentido a isto tudo.”
“Não”, continua, “o teatro chileno não tem medo de olhar Pinochet nos olhos; tem orgulho”.
É mesmo antes da nossa última pergunta: 40 anos depois – ou 20 e tal anos depois, se considerarmos o minuto zero do ano 1987 em que deixamos as personagens de Escuela entregues à sua sorte antes de irmos, nós próprios, beber um copo –, que pergunta ficou por fazer? “Eu perguntaria só isto: depois da derrota, depois da desilusão, como é que se continua a viver?"
Pergunta difícil. Aqui em Portugal, Guillermo, ainda estamos a aprender.