É de noite e eu estava prestes a ir dormir quando uma actualização no feed do meu Facebook me presenteou desagradavelmente – começam a circular notícias que Omar Mateen, autor dos disparos que mataram 50 pessoas em Orlando, era ele mesmo um frequentador da discoteca, e que ele usava uma aplicação para encontros dirigida ao público gay.
A minha crónica anterior acabou com pessoas a dizer que é preciso ter mais medo de mim do que de quem mata 50 pessoas com armas automáticas, que acusar os media de racismo é em si mesmo racista, e que identificar o que sucedeu como um atentado terrorista homofóbico e crime de ódio é, em si mesmo, um acto homofóbico meu. Enfim, caixas de comentários online.
Porém, esta nova revelação vem apenas reforçar o argumento que fiz nessa crónica: o elemento explicativo mais forte não é a pertença étnica de Omar, ou sequer a sua pertença religiosa, mas uma sociedade cuja matriz de base é a supremacia masculina branca cisgénero heterossexual. O sistema cisheteropatriarcal de género é o que define, em última análise, quem é que tem dignidade suficiente para "merecer" estar com vida. É o que define que ser um homem que deseja e/ou ama homens é mau, sujo ou indigno.
Repito: já sei do “Islão homofóbico”. Há homofobia nas interpretações cisheteropatriarcais do Islão? Há. Só que não há mais – nem menos – do que nas interpretações cisheteropatriarcais do Cristianismo; e também não há mais – nem menos – do que nas interpretações cisheteropatriarcais de alguns movimentos ditos ateístas ou humanistas. Porque, surpresa das surpresas, o lugar de enunciação de todas estas visões partilha uma boa parte dos valores centrais. Deixemos isto claro: há reapropriações interpretativas do Corão, tal como há da Bíblia, a partir de perspectivas feministas e queer que transformam o que o Islamismo ou o Cristianismo “são”. Qualquer sistema religioso está dependente de um exercício constante de hermenêutica (interpretação), e é sempre fundamental perguntar quem interpreta, e em que condições.
Não quero fazer psicanálise de sofá, mas é muitíssimo possível que a homofobia que estruturou as acções de Omar também tivesse uma componente de homofobia internalizada. Isto não desculpa Omar, não lhe retira responsabilidade. Mas torna ainda mais relevante perceber que o que ele fez tem um contexto. Que ele nasceu e cresceu nos EUA – tantas vezes considerados o paradigma da Ocidentalidade! – e que, como ele, imensas pessoas brancas cristãs têm as mesmas visões sobre este assunto, e são ensinadas a odiarem-se a si mesmas, no caso de pessoas LGBTQ. Que as nossas noções contemporâneas de género e sexualidade são eminentemente ocidentais, que nós as exportámos mundo fora por via da força.
Sou-vos sincero: não sou fã do conceito de “religião”, por várias razões. Obriga-me, porém, a honestidade intelectual a não querer transformar “a religião” no bode expiatório de tudo o que existe de mau no mundo porque, queira eu ou não, existem outras (muitas!) formas diferentes de fazer religião. Fazer – um acto na continuidade, na temporalidade, e não na imanência essencialista.
Infelizmente – vou agora religiosamente sacar da minha bola de cristal – o que se vai destilar disto, porque a direita conservadora nunca desaponta na sua corrida ao denominador mínimo, é uma ridícula e homofóbica postura de “mas ELES até se matam a si mesmos, então homofobia não existe!”. Sói dizer-se: não. “Eles” foram educados a acreditar que existem apenas dois sexos-géneros, apenas uma verdadeira orientação sexual, apenas uma verdadeira raça, apenas um sexo superior, apenas uma maneira de existir ‘bem’. E a existência “deles” é, todos os dias, todo o dia, uma luta para superar e sobreviver a isso.
Que destas palavras não se retire uma culpa cristã a expiar – mas uma consciência da responsabilidade cívica e política de todas as pessoas, independentemente do género, orientação ou etnia, para tornar este mundo um lugar menos tóxico, menos cisheteropatriarcal. Venham.