Meia centena de pessoas morreu em Orlando, às mãos de um terrorista de origens afegãs. Parece uma descrição simples, objectiva, jornalística. Mas não é. E aí reside o seu perigo: não desmonta as múltiplas relações de poder envolvidas.
Ponto de ordem histórico: este está a ser anunciado como o maior caso de terrorismo doméstico dos EUA. Não é. O infeliz prémio continua a ir para o massacre de Wounded Knee, em 1890. Porque é que esta informação é relevante? Porque há uma longa tradição de adjectivar violência cometida por pessoas brancas como não sendo “terrorismo”, e violência cometida por pessoas não-brancas como “terrorismo”. Não é preciso ir para o séc. XIX — no princípio deste mesmo ano um grupo de homens brancos armados barricou-se numa propriedade do governo federal dos EUA e foram repetidamente chamados de “militantes” na imprensa nacional, não “terroristas”. Em vários outros casos, a culpa é “da música”, “dos videojogos”, de alguma perturbação pessoal — esquematicamente, a violência por pessoas brancas é entendida como subjectiva, e a violência por pessoas não-brancas é vista como social.
No ataque de Orlando, tem sido óbvio: a rapidez com que se fala de terrorismo desde o primeiro momento, e a rapidez com que se soube que o atirador era de origem afegã com possíveis ligações religiosas ao islamismo. Muito menos divulgado tem sido o facto de já ter sido acusado de violência doméstica, ou que tinha posturas extremamente homofóbicas, por exemplo. Circulam já notícias a dizer que foi o grupo ISIS a “inspirar” o ataque, tal como há uns anos “a música” e “os jogos violentos”.
É infeliz que a imprensa reproduza estes discursos simplistas, com ligações causa-efeito lineares, aparentemente objectivas, mas que reproduzem desigualdades raciais e que convenientemente alimentam o discurso do medo contra o outro.
Também não é despiciendo considerar contra quem foram os ataques cometidos: uma discoteca frequentada maioritariamente por pessoas LGBTQ, e que na noite em questão estava com um programa dedicado especificamente à comunidade latina de Orlando. Portanto: contra um espaço de segurança para pessoas discriminadas pela sua pertença étnica, e pela sua orientação sexual e/ou identidade de género. Novamente a explicação rápida cai para a religião: o Islão como homofóbico. Este tipo de islamofobia fácil opera com base em dois apagamentos sistemáticos: existem pessoas islâmicas que são LGBTQ, e existem centenas de leis aprovadas contra pessoas LGBTQ só nos EUA, sítio onde anualmente são mortas cerca de duas dezenas de pessoas trans. Que é como quem diz: não há nada de diferente ou saliente nesta violência contra pessoas LGBTQ que possa ser ligada à religião ou ao facto de o atirador ser de origem afegã.
Isto leva-me ao último ponto: será então que isto não é terrorismo? É terrorismo. Mas focar a narrativa na religião ou na origem étnica é olhar para as diferenças, esquecendo as semelhanças. O atirador, como muitíssimas outras pessoas brancas, era um misógino e homofóbico, com valores e atitudes indistinguíveis de muitíssimas outras pessoas brancas misóginas e homofóbicas, que anualmente assassinam, por esse mundo fora, centenas de pessoas LGBTQ (muito mais eficientes do que o ISIS, portanto).
O ataque de Orlando é um ataque de terrorismo. É um ataque com base no sistema de género "cisheteropatriarcal", com forte matriz ocidental e branca, que mata mulheres, trans, e pessoas não-heterossexuais diariamente, porque considera essas vidas inferiores. Mesmo sem o escape da religião, mesmo sem o escape da etnia. Enquanto esse problema sistémico ficar por contestar, muitos outros momentos Orlando vão acontecer, aos poucos, sem notícias, todos os dias.