Viagem cósmica dos Air encerrou edição mais concorrida do Nos Primavera Sound
Cerca de 80 mil espectadores terão estado nos três dias do festival no Parque da Cidade do Porto. Última noite marcada pelos concertos dos Air, Battles, Moderat ou Car Seat Headrest.
Terminou este sábado a edição mais concorrida de sempre do Nos Primavera Sound. Segundo estimativa da organização terão estado presentes, ao longo dos três dias, 80 mil espectadores.
O desafio para os próximos anos é perceber como é que o evento poderá crescer sem perder aquelas que foram as linhas orientadoras até agora, ao nível da relação com o espaço, da identidade do cartaz e do conforto dos espectadores. Do ponto de vista dos concertos não existiu a unanimidade do ano passado à volta de Patti Smith, sendo talvez os nomes de PJ Harvey, Savages e Brian Wilson os mais transversais, situando-se numa segunda linha os concertos dos Parquet Courts, Animal Collective, Air, Battles, Moderat ou Car Seat Headrest.
Ao longo dos três dias sentiu-se no ar uma discussão interessante. Existia quem achasse que alguns dos concertos mais mediáticos não tinham perfil de festival – Sigur Rós, PJ Harvey, Beach House, Brian Wilson ou Air – segundo aquele velho cliché que para ser desfrutada num contexto de multidão a música tem de ser barulhenta. Do outro lado também havia quem se manifestasse crítico de um cartaz com demasiadas bandas rock enfadonhas apenas para fazer número, sem que se pressentisse a diversidade de que é feito hoje o mosaico da cultura pop contemporânea. Um facto mais salientado pelo cancelamento do rapper Freddie Gibbs.
Há uma semana, em entrevista aos Air, em Barcelona, estes diziam que havia pormenores que podiam condicionar um concerto em festival, falando do caso concreto do som, pelo facto de num contexto daqueles ser mais difícil de apurar e porque a sua música é subtil. Por norma falamos do som apenas quando é deficiente. No sábado, no palco principal, esteve irrepreensível. Claro que não foi isso que definiu a sorte do seu concerto (para além do som, poder-se-ia falar do desenho de luz e da magnífica interactividade com a torre de iluminação), porque se não existisse um naipe de canções que provocava de imediato um efeito de reconhecimento na assistência o espectáculo não tinha funcionado, mas foi relevante.
O concerto dos franceses foi uma viagem à volta do seu percurso de vinte anos, revisitando grande parte dos temas mais emblemáticos, e também uma digressão cósmica, no sentido em que parte das suas canções é habitada por ambientes psicadélicos – é curioso vislumbrar que bandas como os Tame Impala os reverenciam hoje – como se a sua música fosse ponto de partida para construir imponentes sinfonias lunares. Não são canções de apreensão fácil, povoadas por inúmeros elementos electrónicos e acústicos e sem um centro definido, mas muitas delas povoam realmente o nosso imaginário. E foi isso, em grande parte, que fez vingar o seu espectáculo. Para nós que os havíamos visto há uma semana foi uma surpresa.
Não pelo concerto em si, mas pela reacção do público, coisa rara, quase sempre envolvido, relacionando-se com as canções, mesmo quando não eram das mais óbvias, como Playground love da banda-sonora do filme As Virgens Suicidas. No final pediu-se mesmo mais, coisa raramente vista nos três dias. O duo – apoiado por mais dois músicos, todos de branco – foi desfiando canções como Cherry blossom girl, How does it make you feel?, Kelly watch the stars, People in the city, Remember, ou a inevitável Sexy boy, numa mistura de momentos sonhadores com outros de dinamismo rítmico, como em Don’t be light, ou de electricidade desvairada, como no final, num concerto fluído, onde se sentiu que os franceses se reconciliaram com a sua própria música, não necessitando de adaptações padronizadas para multidões, um mal de que padecem muitos concertos hoje como se viu no primeiro dia com os excelentes Deerhunter, que por vezes pareciam querer ser os Coldplay. Quando existe arte, coragem, canções e um público disponível, a viagem é possível. Os Air mostraram-no.
Outro cliché instalado nos grandes festivais é o de que as bandas portuguesas não servem para tocar no horário nobre. Nos últimos anos tem existido uma reconciliação do público com a música feita em Portugal mas nestes ambientes isso ainda não tem tradução. O argumento é o de que podemos ouvi-las ao longo do ano. É pobre pensar assim. As ocasiões também se preparam. Têm de ser os próprios festivais a criar esses momentos. Saber programar também é isso. Não é ir sempre ao encontro fácil daquilo que são as supostas expectativas do público. Os Linda Martini, que abriram o palco principal, pelas 18h, mereciam outro protagonismo.
Deram mais um bom concerto. Mas a questão não é essa. A questão é perceber que tocando a outra hora, tivesse existido um trabalho prévio de comunicação e uma aposta séria naquele espectáculo, teria sido provavelmente um daqueles para mais tarde recordar e para ficar associado ao próprio festival. Assim foi apenas mais um excelente concerto do quarteto com rock acutilante, feito de muito nervo e transpiração, mas também com poesia lá dentro.
Quem também actuou ainda com sol foi a galesa Cate Le Bon, que perante um público que ainda se espreguiçava mostrou que as suas canções vagamente folk merecem atenção, ou os nova-iorquinos Chairlift, que ali tinham dado um magnífico espectáculo há três anos. Na altura ainda não tinham lançado o decepcionante Moth, o seu último álbum. A diferença foi essa.
Quando foram apresentados os temas antigos, o grupo da irrequieta Caroline Polachek convenceu, com uma pop electrónica exuberante mas inclassificável, algures entre os Chromatics e os Stereolab. Quando chegaram as novas canções, misto de pop e r&b, com arranjos que nem sempre funcionam, a coisa esmorece. Às tantas Caroline apontou para o horizonte e disse que o sol estava a pôr-se. Foi aí que tiraram da cartola Song to the siren de Tim Buckley (numa versão a lembrar This Mortal Coil) e não se saíram nada mal da tarefa.
Também de Nova Iorque, mas com outro rumo estético, os Battles estão a conhecer uma segunda existência e a desfrutar dela. Percebe-se em palco que o prazer de tocar rock como se fosse música de dança está intacto. Alguns temas mais parecem maratonas musicais, com ritmo desenfreado, texturas minimalistas e paisagens hipnóticas, num todo quase sempre instrumental, com guitarra, programações e, principalmente, a bateria, desenhando um som vigoroso, que consegue ser tão primitivo como elaborado. Grande momento, o inevitável Atlas, o seu tema mais universal, com o público totalmente rendido ao trio americano.
À mesma hora tocaram os Car Seat Headrest de Will Toledo, que havíamos visto em Barcelona. Conseguimos ver um pouco e pareceu-nos um concerto mais inspirado do que o de Espanha, com um equilíbrio perfeito entre melodia e distorção, entre baixa fidelidade e canções radiantes, perante uma assistência que olha para Toledo como novo herói ‘indie’.
Quem também anda em alta são os Algiers, que com um álbum homónimo deram muito nas vistas no ano passado, algures entre o quase gospel e o pós-punk mais abrasivo, mas os americanos não foram capazes de se impor pelo menos na primeira metade. Fomos por isso espreitar o rock & roll com atitude de Neil Michael Hagerty, mas o sobrevivente dos Pussy Galore e cabecilha dos Royal Trux, coadjuvado pelos Howling Hex, estava em dia não.
A honra do rock & roll, como matéria corrosiva, seca, psicadélica e ainda perigosa, acabou por ser salva mais tarde por Ty Segall, enquanto à mesma hora, no palco principal, os alemães Moderat, a superbanda tecno de Berlim constituída pelos dois Modeselektor e por Apparat, saciava a vontade de celebração de mãos no ar de um público que se rendeu à sua mistura de estruturas tecno, sofisticação pop, baixos profundos e uma comunicação visual eficiente. Para a maior parte foi o fim do festival, que regressa de 8 a 10 de Junho do próximo ano.