A Ásia mergulhou de cabeça num mar traiçoeiro
O Mar do Sul da China é cada vez mais o campo onde se joga muito do que pode ser o futuro da geopolítica. Pequim não quer partilhá-lo com os seus vizinhos e está disposto a subir a parada. Pela primeira vez, um tribunal internacional vai pronunciar-se sobre um território disputado.
A ilha de Yagong não era, literalmente, um sítio onde um cão pudesse viver. Um dos pescadores que habitava neste território, que mais não era do que um hectare composto por coral branco e conchas de moluscos, deixava ali o seu fiel amigo enquanto se fazia ao mar. O cão tentava nadar, mas não chegava longe e depressa regressava ao maldito coral. Com os dias solitários, deixou de comer e morreu. A história tem mais de 20 anos, mas em Yagong permanece ainda a pedra com a inscrição “campa do cão”, escreve o correspondente do South China Morning Post que em Maio visitou a ilha.
Muito mudou em Yagong nos últimos anos. Hoje tem 78 habitantes que moram em casas com ar condicionado, frigorífico e televisão por cabo. Mas esta mudança vai muito além de um qualquer esforço de requalificação urbana. Yagong está localizado no arquipélago das Paracel (conhecidas como Xisha na China e Hoàng Sa pelos vietnamitas), um conjunto de ilhas rochosas e de corais altamente contestado pela China e pelo Vietname. Nos últimos anos, o Mar do Sul da China tornou-se no palco de uma disputa pela sua soberania entre vários países da região. Em jogo está muito mais do que rochedos e recifes — há a afirmação geopolítica da China, a divisão de vastos recursos, o futuro dos direitos de navegação e até os receios de uma guerra em larga escala.
Pequim reclama a soberania sobre praticamente todo o Mar do Sul, sobre o qual diz ter “direitos históricos”. Estes direitos remontam até ao século XVII quando o então Império Celestial dominava toda a região e os restantes estados se limitavam a prestar tributo ao imperador. De acordo com a mitologia, os primeiros pescadores neste mar eram chineses. “As ilhas no Mar do Sul da China foram território chinês desde os tempos antigos. O Governo chinês deve ter a responsabilidade de garantir a sua soberania territorial”, declarou o Presidente Xi Jinping no ano passado.
O Império Celestial terminou de forma violenta com a entrada em cena das potências militares europeias durante o século XIX, que tomaram para si partes do vasto território da dinastia Qing. Essa humilhação, muito presente até hoje no imaginário chinês, serve para a China actual — com estatuto renovado de potência mundial — reclamar o seu território marítimo.
Na base das pretensões chinesas está um mapa de 1947, ainda antes da revolução comunista, em que é apresentada a chamada “linha de 11 traços”, que delimita o território marítimo chinês — e que engloba praticamente todo o Mar do Sul da China. A vitória de Mao Tsetung em 1949 desfez o regime nacionalista do Kuomintang, mas manteve as suas aspirações de controlo marítimo. Caíram dois traços — para resolver uma disputa com o Vietname correspondente ao Golfo de Tonkin — e passou a vigorar a fórmula da “linha de nove traços”, também chamada de “língua de vaca”.
Não é necessário um curso por correspondência em cartografia para perceber que as reivindicações da China chocam de frente com as zonas económicas exclusivas dos países da região. Falamos de 3,5 milhões de quilómetros quadrados que coincidem com reivindicações das Filipinas, Malásia, Brunei, Vietname e Taiwan (como entidade que sucede à República da China, as exigências territoriais de Taiwan são as mesmas da República Popular da China, com óbvias diferenças quanto ao nível da sua defesa).
Morar num recife
Voltemos a Yagong, a ilha do cão solitário. Homens como Ye Xingbin, um pescador de 66 anos, têm uma importância vital no grande xadrez que a China está a jogar. Ye mudou-se para a remota ilha há 16 anos e recorda-se de como era difícil a vida naquele território. A única água potável vinha das chuvas, os dentes eram lavados com água salgada, a roupa era lavada no mar e os tufões uma ameaça constante. E o pior — nada de mulheres. “As condições de vida eram demasiado más para as mulheres. A vida era dura e solitária, nem os homens queriam ficar muito tempo”, conta.
Hoje, os habitantes do ilhéu ganham em média entre 60 a 70 mil yuan por ano (mais de oito mil euros), acima da média nacional de 56 mil, e bastante mais que a maioria dos pescadores. O Governo de Pequim tem feito tudo para encorajar os chineses, especialmente da província da Hainan, a viverem permanentemente nos territórios em áreas contestadas do Mar do Sul. Segundo o SCMP, cada habitante que viva na ilha durante mais de seis meses por ano recebe 45 yuan por dia — um valor que dobra se se tratar de um casal.
Mas não é só através de subsídios e televisões por cabo que a China se vai estendendo no Mar do Sul. No ano passado, foram divulgadas imagens de satélite em que era possível ver uma pista de aterragem terminada numa das ilhas disputadas pela China no arquipélago das Spratly e a construção de outras duas. Noutros locais, Pequim tem transformado conjuntos de rochas em ilhas artificiais, calculando-se que já tenha construído sete desde 2014, criando ao todo três mil acres de território. O Vietname tem seguido o exemplo e nos últimos dois anos já construiu mais de 120 acres de ilhas artificiais, de acordo com o site Asia Maritime Transparency Initiative.
A situação preocupa Washington, que receia estar perante a “militarização” do Mar do Sul da China. Numa conferência anual sobre segurança em Singapura no início do mês, o secretário da Defesa norte-americano, Ashton Carter, disse que a China está a construir “uma grande muralha de auto-isolamento”. Mas a verdade é que as acções chinesas podem realmente mudar a realidade. À margem do encontro, um diplomata europeu que não quis ser identificado dizia que os chineses “alteraram os factos na água”. “No ano passado, toda a gente alertava para a ameaça da construção de ilhas da China, mas agora eles construíram pistas de aterragem para caças, portos e instalações para radares no Mar do Sul da China”, disse o diplomata ao Financial Times.
Os conflitos em torno do domínio sobre o Mar do Sul da China preparam-se para passar agora a uma nova fase. O Tribunal Arbitral Permanente de Haia está prestes a divulgar a decisão quanto à queixa interposta em 2013 pelas Filipinas contra as reivindicações da China à luz da sua “linha de nove traços”. A maioria dos analistas prevê uma sentença favorável à posição de Manila. Porém, é incerto qual o impacto que a decisão do colectivo de juízes poderá ter no terreno — ou seja, nas águas.
Pequim já fez saber que não vai respeitar a decisão do tribunal e tem sublinhado a necessidade de resolver a questão através de negociações bilaterais. A China considera que a Convenção da ONU para o Direito do Mar (UNCLOS, na sigla inglesa), o corpus jurídico que preside à decisão do tribunal, não cobre questões de soberania e, portanto, os juízes de Haia não têm competência sobre o caso.
“A decisão da ONU irá criar mais problemas do que soluções”, escrevia recentemente o professor da Universidade de Maryland, John Rennie Short, num texto no blogue China Policy Institute. “Interpretada pela China como uma jogada de poder inspirada pelos EUA, irá aumentar em vez de desanuviar as tensões geopolíticas”, conclui. Uma das respostas que Pequim pode dar a uma possível condenação é a imposição de uma “zona de identificação de defesa aérea” (ADIZ, na sigla inglesa) aplicável às áreas do Mar do Sul da China que reivindica. Este regime obriga a que qualquer aeronave estrangeira peça permissão a Pequim para atravessar o espaço aéreo em questão. A China já aplicou esta medida em relação ao espaço aéreo no Mar do Leste, onde também disputa um conjunto de ilhas com o Japão. Os EUA já avisaram que uma decisão nesse sentido será entendida como um acto “provocatório e desestabilizador”.
Entram os EUA
Sob o pano de fundo das várias disputas territoriais no Mar do Sul da China está um confronto latente entre as duas grandes potências do início do século XXI — China e Estados Unidos. Apesar de não ter reivindicações sobre nenhuma zona daquele mar — e de garantir não tomar lados nas disputas —, Washington não se tem limitado a assistir à contenda. “A disputa no Mar do Sul da China é sobre quem será o líder da matilha na Ásia”, diz à revista Time o especialista do Instituto Yusof Ishak, Ian Storey.
O Presidente Barack Obama revelou desde logo que a Ásia seria prioritária na sua agenda de política externa e, como tal, um dossier como o do Mar do Sul da China não lhe poderia ser indiferente. Os EUA têm tratados de defesa mútua com praticamente todos os países da região em litígio com a China e têm reforçado os laços na região. O levantamento do embargo à comercialização de armamento imposto ao Vietname anunciado no mês passado seguiu essa linha.
Há várias razões para que a China e os seus vizinhos estejam dispostos a ir tão longe por causa deste mar. O Departamento de Informação e Energia dos EUA estima que existe um potencial de exploração de 11 mil milhões de barris de petróleo — equivalente às reservas totais do México — e de 190 biliões de pés cúbicos de reservas de gás natural — superior às reservas da Nigéria. Porém, alerta o relatório, a exploração destes recursos apresenta “desafios desencorajadores” por causa da morfologia da região e dos constantes tufões e correntes fortes.
O que se passa à superfície é, provavelmente, mais interessante do ponto de vista económico. O controlo sobre o Mar do Sul da China é também o controlo sobre um espaço por onde passa um terço do comércio marítimo mundial, algo como cinco biliões de dólares (4,4 biliões de euros) anuais. Pelos estreitos de Malaca, Sunda e Lombok passa mais de metade do tráfego marítimo, entre o qual cerca de um terço do transporte de petróleo e mais de metade do gás natural liquefeito.
É previsível que as águas do Mar do Sul da China continuem agitadas durante mais algum tempo. Para já, os episódios de violência que têm ocorrido resumem-se a trocas de tiros de aviso entre patrulhas e barcos pesqueiros e algumas detenções temporárias de tripulações. Mas são muitos os elementos passíveis de perturbação.
Os EUA têm realizado várias patrulhas, marítimas e aéreas, para reafirmar a defesa do princípio de “liberdade de navegação”. Pequim tem endurecido o discurso de condenação a estas patrulhas e tem intensificado a sua resposta. Em Maio, os dois países trocaram acusações na sequência de um voo rasante entre dois caças chineses e um avião de reconhecimento norte-americano.
Ao mesmo tempo, os países da região parecem ter entrado numa corrida ao armamento. Segundo o instituto IHS Jane’s, os orçamentos de defesa na Ásia-Pacífico devem aumentar 25% entre 2015 e 2020 para um total de 533 mil milhões de dólares (470 mil milhões de euros).
Ainda não há batalhas navais, mas pelo Mar do Sul da China já existem milícias marítimas patrocinadas pelo Governo chinês. Apesar de existirem pelo menos desde o final dos anos 1980, o endurecimento das relações regionais tem levado a uma intensificação da sua actividade. São compostas maioritariamente por pescadores da cidade de Tanmen, na ilha de Hainan, e as suas “missões” passam pela intimidação de navios pesqueiros estrangeiros.
São encaradas como “milícias-modelo” pela liderança chinesa — tendo até recebido uma visita de Estado de Xi Jinping em 2013. “Nenhuma outra unidade fez contribuições tão grandes ao longo do tempo pela construção chinesa e pela promoção dos ‘direitos’ no cada vez mais contestado Mar do Sul da China”, conclui um estudo levado a cabo pelo Centro Internacional de Segurança Marítima, um think-tank norte-americano. Os investigadores estimam que a frota desta milícia seja composta por 786 navios, dos quais 174 com capacidade para navegação de média distância.
A generalidade dos analistas concorda que ninguém quer ir para a guerra por causa de umas rochas e de uns corais. Mas, como sempre, os problemas são mais prováveis quanto menor for o controlo sobre o desenrolar dos acontecimentos. E não faltam exemplos de situações potencialmente perigosas, como observa o professor John Rennie Short: “Um lugar-tenente chinês com excesso de zelo abre fogo sobre um navio norte-americano; um contra-torpedeiro dos EUA choca contra um barco pesqueiro chinês.”