O coro é quem mais ordena
Na ópera de Verdi o povo é o coro, e o coro tem um papel decisivo do princípio ao fim de Nabucco.
Desta vez não é o par amoroso que comanda os destinos do teatro e da música. Nesse sentido, Nabucco é uma ópera atípica. As atenções voltam-se para estranhas personagens, Abigaille e Nabucco, que parecem loucos ou caminham para a loucura consumidos pelas ambições de poder. Este primeiro grande sucesso operático de Verdi é uma reflexão política sobre o seu tempo, disfarçada em longínquas antiguidades, com referências bíblicas, históricas ou reinventadas. Uma reflexão em que entra uma outra "personagem" que passa, no século XIX, a ser motivo, assunto central e motor das artes: o povo. Na ópera de Verdi o povo é o coro, e o coro tem um papel decisivo do princípio ao fim de Nabucco.
Na encenação de Heller-Lopes, com uma cenografia muito bem conseguida (com altos painéis de pequenos tubos que desenham figuras "assírias" e deixam passar a luz), o famoso coro dos escravos hebreus foi destacado como momento central. Momento muito bem conseguido, diga-se: vemos um coro rigorosamente quieto atrás das grades de uma prisão. Depois agita-se, sobe as grades, procura a emancipação. "Va, pensiero, sull'alle dorate..." continua (ou volta) hoje a ter força como um grito e um murmúrio de liberdade, quando se quer lembrar que devia ser o povo quem mais ordena e não os tiranetes que comandam os destinos do mundo e se arrogam ser deuses. É sobre isto, Nabucco.
Mas também é questão da ópera a própria possibilidade da música ser teatro, e aqui a arte do jovem Verdi já se revela esplendorosamente. A música ornamenta a violência no papel desregrado e impetuoso de Abigaille, que Elisabete Matos segurou muito bem com o seu savoir-faire, embora as exigências vocais deste papel sejam gigantescas - desmesurada, quase incongruente, com saltos súbitos do agudíssimos ao grave, pausas surpreendentes, teatro na voz em toda a linha, sempre. A música desenha também espaços longínquos, vem de longe e de perto para dizer ao povo que ouve que tem uma palavra a dizer. Verdi também se fez de um novo público, de classes que já não estavam dispostas a aturar o status quo. É a música que vem avisar os poderosos que os tigres são de papel e que as coroas mudam depressa de cabeça.
Àngel Òdena foi Nabucco. E começou mal, desafinando três vezes em duas frases apenas (será que não ouvia a orquestra?) Mas mostrou depois ser um grande barítono, e progressivamente ocupou o palco do Teatro de São Carlos em todas as nuances vocais e teatrais que o papel exige. Porque Nabucco transforma-se - enlouquece, volta a si, vai da ira guerreira à compaixão mais tocante. Do outro lado da barricada na guerra dos reis, Simon Lim foi um Zaccaria competente, mas faltava alguma projecção nos graves para lhe dar mais solidez.
De qualquer forma, o elenco acabou por se mostrar equilibrado, com boas participações de Maria Luísa de Freitas (que quase só tem espaço para brilhar na bela prece de Fenena), Carlos Cardoso (um Ismaele muito vivo) e ainda as muito boas participações de André Henriques, Pedro Rodrigues e Carla Simões. Se nas próximas récitas a cumplicidade com a orquestra melhorar ainda, este Nabucco pode crescer. A direcção de Pirolli foi correcta, e alguns solistas da Orquestra Sinfónica Portuguesa fizeram um excelente trabalho em detalhes musicais decisivos para este "drama lírico". Um violoncelo pode dizer muito sobre o ser humano. Mas na primeira parte (aqui e ali) houve algumas confusões, e desencontros com o coro que podem ser acertados. O coro brilhou, e sentiu-se o prazer de cantar este Verdi - esta ópera é para ele, afinal. Para o povo que ainda não é quem mais ordena.