Foram os elementos da PIDE/DGS presos e julgados?
Houve em Portugal um processo de justiça política, embora incompleto e marcado por sentenças benévolas, atenuantes e perdões.
Num artigo, de Maria Lopes, publicado no PÚBLICO em 28 de Maio de 2016, acerca de um estudo do Instituto de Ciências Sociais, persiste a ideia de que não se teria feito “justiça em relação aos funcionários da PIDE/DGS responsáveis pela repressão durante o antigo regime”. É certo que o próprio inquérito assinala que houve julgamentos, mas que estes resultaram em “penas entre um e seis meses de prisão”. Como procurarei demonstrar, através de um estudo que darei à estampa este ano, no caso de Portugal, o que aconteceu, na sequência da queda da Ditadura, em 25 de Abril de 1974, contrariamente ao que terá ficado na memória, foi mais complexo.
Apenas após a II Guerra Mundial o processo de Justiça foi pensado em termos de procura de uma responsabilização judicial – Accountability – num tribunal criminal internacional. Anos depois do julgamento de Nuremberga, em 1974 e 1975, caíram os regimes ditatoriais de Portugal, da Grécia e de Espanha, na que foi considerada como uma segunda vaga ou o início de uma terceira vaga de transições para a democracia, ainda em período de guerra-fria. Tendo, em Portugal, decorrido o fim da Ditadura através de uma ruptura política, as principais instituições do regime derrubado foram de imediato extintas, nomeadamente a polícia política, embora não inicialmente nas colónias em guerra.
Após a polícia política ter provocado em Lisboa os únicos mortos e feridos, no dia 25 de Abril, o movimento popular que prontamente irrompeu tornou insustentável não só a continuação da PIDE/DGS, como, temendo represálias, os elementos desta escolheram entregar-se às mãos dos militares, para não sofrerem represálias. Foi assim que mais de 1.500 detenções de elementos e informadores da PIDE/DGS ocorreram entre 25 de Abril e Outubro de 1975. Paralelamente, o “peixe graúdo” escapou à detenção: Marcelo Caetano e Américo Tomás – este regressaria, em 1977 - foram enviados para um “exílio” dourado e inicialmente os ministros do Interior não foram presos. Nas colónias africanas em guerra, houve a veleidade de manter a DGS, então transformada em Polícia de Informação Militar, mas por pouco tempo.
A opinião pública, particularmente a mais directamente alvo da repressão no Estado Novo, tendeu depois a deixar progressivamente a iniciativa de levar a cabo o processo de “Accountability” ao MFA em nome da vivência de um presente em transformação. Por seu turno, este criou a Comissão Liquidatária e os Serviços de Coordenação de Extinção da PIDE/DGS e da LP – conhecidos por Comissão de Extinção -, iniciando os primeiros interrogatórios e a instrução de processos dos elementos da PIDE/DGS. No seio do novo poder político-militar, os sucessivos fracassos do general Spínola, em 28 de Setembro de 1974 e em 11 de Março de 1975, levariam ao início do chamado processo revolucionário em curso – PREC –, com consequências a nível de purgas no aparelho de Estado e em empresas privadas, já iniciadas desde Maio de 1974. Voltaria então à ordem do dia a vontade de levar a cabo um processo de justiça, já apenas limitado aos membros da ex-polícia política, com a promulgação da lei n.º 8/75, de 25 de Julho, de incriminação dos elementos da PIDE/DGS, prevendo o seu julgamento, com base na figura de “organização de malfeitores”.
O chamado PREC terminaria, em 25 de Novembro de 1975, levando a modificações de monta no que se relacionou com o processo de Justiça de transição. A lei n.º 8/75 foi alterada por dois diplomas que a esvaziou da sua substância, possibilitando a libertação provisória dos elementos da ex-PIDE/DGS enquanto aguardavam julgamento e introduzindo atenuantes na incriminação. Os anos entre 1976 e 1978 foram assim os de “todas as libertações”, quando a Comissão de Extinção da PIDE/DGS foi tutelada pelo então major Sousa e Castro e chefiada executivamente pelo general Ribeiro Faria. No final de 1976, iniciaram-se os julgamentos de elementos da PIDE/DGS, em Tribunal Militar, onde os juízes se destacaram pela extrema benevolência, dado que a maior parte dos réus foi de facto condenada a penas equivalente ao tempo de prisão preventiva já cumprida.
Com base numa amostra de 851 processos por nós analisados, julgados nos Tribunais Territoriais Militares, entre 1978 e 1985, verificou-se que, até esta última data, foram julgados 2.895 processos. Outra amostra de 930 casos julgados pelos 4.º e 5.º TMTs de Lisboa revela que 6% foram absolvidos ou condenados apenas a perda de direitos políticos, 64,1% foram condenados a penas até um mês de prisão, enquanto 11,85% e 13,5% foram respectivamente sentenciados a penas até um ano e de 13 meses a 2 anos. A duração destas últimas penas aproxima-se do tempo de prisão preventiva já sofrida, para que pudessem sair em liberdade definitiva. Apenas 3,2% – acusados de crimes de sangue ou julgados à revelia - foram condenados a penas entre os dois e seis anos de prisão maior. Por outro lado 60% dos condenados beneficiaram de perdões e de outras atenuantes que permitiram a redução das penas e a sua saída em liberdade definitiva, situação em que já encontravam 3.773 (98%) dos elementos da ex-PIDE/DGS, em 1982. Quanto aos ex-ministros do Interior, Alfredo Santos Júnior foi condenado, em 1979, a dez meses de prisão, já expiados com a prisão preventiva, e, julgados posteriormente, César Moreira Baptista e Arnaldo Schultz foram absolvidos.
Houve assim, em Portugal, um processo de justiça política, embora incompleto e marcado por sentenças benévolas, atenuantes e perdões, que transformaram a memória desse período, levando a maioria dos portugueses pensar que teria havido impunidade. Quanto à chamada Justiça de reparação, foi finalmente promulgado a Lei n.º 20/97, de 19 de Junho, beneficiando, em termos de segurança social e pensões de reforma, os opositores à Ditadura, sendo contado em especial o tempo de prisão, exílio e de clandestinidade. É certo que a memória da Ditadura e do seu aparelho repressivo se foi diluindo em nome do presente e da construção de um futuro e que, embora haja uma sensação de impunidade, já passou, salvo melhor opinião, o tempo de exigir qualquer “Accountability” em tribunal ou mecanismos de procura de verdade.
Hoje, mais de 40 anos após o fim da Ditadura, a memória tem desabrochado relativamente ao seu aparelho repressivo, através de peças de teatro, documentários e livros de testemunhos. O facto de o Museu do Aljube apenas ter aberto as suas portas em 2015 é revelador de que a opinião pública não se mobilizou em geral para a criação de locais de memória. Esta ausência foi porém compensada pela existência de importantes arquivos, que preservam a memória, possibilitando a análise histórica, combatendo tanto a amnésia destrutiva, como a recordação obsessiva. O papel principal cabe agora à continuação da recolha de testemunhos e de memórias, mas sobretudo à História.
Historiadora