O “projeto falhado” da Cresap ou a parcialidade dos Governos na escolha dos dirigentes
Será que as largas dezenas de personalidades que foram impedidas pela Cresap de exercer o cargo de gestor público, cujo perfil foi considerado inadequado, julgarão que a Cresap é um projeto falhado ou uma fantochada? Será que os titulares em regime de substituição no exercício de cargos de direção superior na Administração Central do Estado que não integraram a proposta de designação avaliam de forma crítica a Cresap? Poderão todos avaliá-la com acrimónia, mas certamente por razões muito diferentes das da Dr.ª Manuela Ferreira Leite ou do Prof. Correia de Campos.
Desde logo, importa esclarecer que, num estudo conduzido pelo Professor Pedro Correia, do ISCSP da Universidade de Lisboa, sobre o grau de satisfação dos sete mil concorrentes a concursos públicos da Cresap às perguntas “Recomendava a um seu amigo que concorresse?” ou “Voltará a concorrer?” os cerca de mil e seiscentos respondentes atribuíram oito pontos e meio, numa escala de zero a dez. Parece que quem usa a Cresap, tal como acontece com o Serviço Nacional de Saúde, aprecia mais a sua qualidade do que aqueles que a não utilizam. Estes dados encontram-se no sítio eletrónico da Cresap.
Onde radica então este mal-estar subjacente a tão críticas apreciações? Firma-se na convicção de que competiria à Cresap despartidarizar o setor público. Ora, embora necessário, nada de mais errado, porque é na escolha do membro do governo que reside o problema e não na selecção feita pela Cresap. Fosse a escolha imparcial, e publicamente escrutinada, e o problema estaria resolvido.
Com efeito, em nenhum momento o legislador atribuiu à Cresap, no seu estatuto, na lei ou no regulamento, competência ou missão de despartidarizar a Administração. A própria Constituição da República afasta totalmente tal possibilidade, por constituir uma violação grosseira do princípio da imparcialidade, que impede que um candidato seja afastado com fundamento no credo, etnia, filiação partidária ou género.
Sendo assim, como é que se chegou a esta confusão? A resposta é simples, basta consultar os documentos na Assembleia da República. É que, na “explicação de motivos” - espécie de documento de relações públicas - dos projetos de lei, o Governo afirmava esse desígnio, sem que o mesmo entrasse, nem ao de leve, no articulado ou, sequer, no preâmbulo das duas leis. Nos termos da lei, a Cresap não tem a missão de despartidarizar o setor público. Por isso, não deixa de se colocar a questão: Se não serve para despartidarizar, servirá então para quê?
A missão da Cresap é garantir o mérito, apondo um selo de qualidade, quer na selecção dos três candidatos, quer na avaliação dos gestores públicos. Serve para isto; mas, servindo humildemente para isto, a Cresap tem impedido que aqueles que não têm mérito fiquem impedidos de exercer cargos públicos.
O Professor Salazar, em entrevista ao jornalista António Ferro, em 1932, afirmava: “Há que regular a máquina do Estado com tal precisão, que os ministros estejam impossibilitados, pela própria natureza das leis, de fazer favores aos seus conhecidos e amigos”.
Ora, ao contrário do Doutor Salazar, eu não acredito neste positivismo normativo, nem atribuo à natureza das leis este poder demiúrgico. A questão não é jurídica; é comportamental ou de habitus. No conceito que lhe deu o sociólogo francês Bourdieu, a lei ajuda, mas não é um bom instrumento para resolver problemas desta natureza.
A furiosa cupidez expressa por alguns governantes, criticada, entre outros, por mim diversas vezes - por, da proposta de designação, escolherem apenas os apaniguados -, não se resolve com mais legislação, mas apenas com mudança de habitus por parte de quem escolhe, ou seja, de quem governa.
O habitus dos políticos (incorporação em determinada estrutura social por meio de disposições, para sentir, pensar e agir), marcado pela ideia de que o exercício de cargos de direção na Administração Central do Estado ou na administração de empresas do setor público é o prémio pelo trabalho político dedicado ao partido desde a juventude, tem de mudar; e este habitus não muda por imposição legal. Muda quando cada membro do Governo incorporar e expressar nos seus actos o princípio da imparcialidade.
Por isso, confesso a minha descrença na natureza milagrosa das leis, afigurando-se-me antes tratar-se de grave e contagiosa maleita, de que enfermam políticos profissionais e não políticos. Mal surge um problema real ou hipotético, atira-se com alteração legislativa, na maior parte das vezes uma solução barata e politicamente correta, mas infelizmente ineficaz. Todavia, no curto prazo, possui o poder milagroso da mezinha que tudo cura.
No longo prazo, a solução passa pelo reforço da cidadania ativa e pelo aumento do escrutínio dos cidadãos e, em particular, dos jornalistas. Lembro, a título de exemplo, que o caso dos diretores distritais de segurança social, que alimentou a retórica de políticos e comentadores, foi fruto de um acto de cidadania praticado por uma jornalista.
Não posso, porém, terminar sem deixar claro este ponto. Se as nomeações continuassem a ser feitas com base na confiança política, não estaríamos agora a ter esta discussão, e se agora a fazemos é porque, com a criação da Cresap, aumentou o escrutínio público das nomeações. Se outra vantagem não houvera logrado o projecto Cresap, esta vantagem, pelo menos, alcançou.
Presidente da Cresap