Quando era pequena, acordavam-me várias vezes com música. A minha infância ecoa àquelas manhãs de sábado sem hora prevista, sem a violência da pressa, com uma canção sempre diferente a furar os meus sonhos - como algodão doce - sem magoar. Acordava imensamente feliz, aos sábados, e corria atrás das canções para encontrar gente. Isto de me fazerem correr atrás de alguma coisa para confirmar o dia que já tinham erguido por mim para ser, seguramente, um dia muito bonito, é de uma mestria sem par. Acordava a sorrir. Julgo que seja um dom do amor, isto de nos fazerem felizes de manhã sem contar graça nenhuma.
Pergunto-me, várias vezes, porque fomos todos pequenos a querer ser imensamente crescidos. Projetámos os dezoito anos a achar que seríamos enormes, pintámo-los como aquela transcendente emancipação que nos ia permitir guiar rumo ao proibido. O proibido mostra-se pouco desafiante quando lhe conseguimos ver o horizonte e assim seguimos para ser adultos que sorriem cada vez menos vezes de manhã. Rumamos crescidos, com obrigações, a descobrir mundos diferentes da esfera onde antes acabava o nosso, a apercebermo-nos de datas de validade em cartas que não sonhávamos que expiravam, a conhecer locais de trabalho, alegadamente tão mais mágicos que qualquer escola, para se virem a mostrar, depois, embaciados da ideia na nossa imaginação.
Tenho esta perceção de que nunca mais voltamos a acordar como quando somos pequenos. Espero, porém, que continuemos todos a correr atrás de alguma coisa de manhã, porque a inocência da descoberta faz de nós adultos mais audazes.
“Não cantes antes do pequeno-almoço”, diziam-me os meus pais a sorrir. Foi a proibição mais bonita que lhes encontrei, porque não só a desafiava sem ser repreendida como era a lei menos dura que vinha no meu código. Esta lei vivia entre a minha inocência e o mundo real e espero nunca a ter perdido. Fiquei a repetir esta frase, para sempre, enquanto ouso cantar várias vezes antes dos pequenos-almoços. É uma frase que vive entre o meu lirismo e o meu pragmatismo, mas julgo que é a parábola daquilo que faz de nós eternamente crianças. Alguns adultos “não sabem nem sonham”, mas a aspiração não vive só nos mais pequenos. Já dizia Manuel Freire, um dos que me furava os sonhos sem magoar, a cantar palavras de Gedeão, que “o sonho é uma constante da vida”. Queiramos todos que seja “tão concreta e definida como outra coisa qualquer”.