A eutanásia e o regime político
O debate em torno da despenalização da eutanásia é um teste ao próprio regime político. Porquê, porque a democracia que conquistámos coletivamente no 25 de abril tem uma marca genética. A marca de que a nossa sociedade não pode nem deve ser governada, como foi no passado, por um conjunto de personalidades por mais ilustres que possam ser. A marca genética da nossa democracia é o pluralismo ideológico e a possibilidade de diferentes mundividências se confrontarem no espaço público, permitindo assim que os cidadãos formem a sua opinião e decidam em conformidade. O oposto do que está a acontecer em Portugal. Uma minoria – até prova em contrário – quer impor a sua visão do mundo, sem legitimidade democrática para o efeito.
Deve recordar-se que tivemos eleições legislativas em outubro do ano passado e este teria sido um excelente momento para discutir este tema com honestidade intelectual e rigor técnico. Mas tal não aconteceu. E assistimos hoje a uma inaceitável instrumentalização político-partidária de um assunto tão sensível e complexo como a dignidade no fim da vida e a morte medicamente assistida.
Por isso defendi e defendo que, sendo o tema da eutanásia tão complexo e fraturante, deve ser realizado um referendo nacional sobre a sua despenalização. De facto, o debate social e político em torno da eutanásia origina uma acesa controvérsia num diálogo nem sempre construtivo em torno do conceito de morte com dignidade. Se é certo que assistimos a uma crescente aceitação desta prática quer pela classe médica quer pela população em geral, deve questionar-se se o direito à autodeterminação é ilimitado, nomeadamente no que concerne ao pedido para terminar a própria vida. Ou, pelo contrário, se existem fronteiras que não devem ser ultrapassadas.
Deve realçar-se que o conceito de eutanásia internacionalmente reconhecido se reporta à perspetiva holandesa, ou seja à morte intencional de um doente, a seu pedido (firme e consistente), através da intervenção direta de um profissional de saúde. Para além da reflexão ética, questão distinta reporta-se à despenalização da morte medicamente assistida. Nomeadamente face aos constrangimentos sociais e económicos que a população portuguesa atravessa e às enormes carências existentes no que se refere ao acesso a cuidados paliativos em doentes terminais.
Em síntese sou de opinião que previamente à despenalização da eutanásia é fundamental promover um debate sério e participado sobre a legitimidade da eutanásia no plano ético/social e sobre a necessidade de legislar nesta matéria. Designadamente deve garantir-se uma clara distinção entre “eutanásia voluntária” e “eutanásia involuntária”.
E a Assembleia da República, o Governo e demais órgãos de soberania devem promover a realização de um referendo nacional de modo a que a vontade soberana do povo português possa legitimar qualquer evolução legislativa. Não realizar um referendo e legislar precipitadamente nesta matéria, sem debate, sem esclarecimento, sem contraditório, é regressar ao passado. É regressar a um tempo que julgávamos ultrapassado em que alguns decidiam pelo futuro de todos. O referendo à eutanásia é portanto um sinal claro de vitalidade do regime democrático e dos valores pelos quais se realizou uma revolução em Portugal.