O talentoso gentil
Se conheciam Steve Gunn como guitarrista virtuoso, esqueçam – o caminho dele, agora, é o das canções.
Corria o ano de 2013 e Steve Gunn, músico cuja tarefa até então parecia ser a de usar a guitarra para escavar as raízes mais obscuras da folk americana, tomou uma decisão que por norma é a morte do artista, se por artista entendermos guitarrista: cantar. O disco chamava-se Time Off mas Gunn não precisou de dar um tempo: o alcance da sua música aumentou. Segunda-feira, dia 30, no GNRation, em Braga, e terça, dia 31, na ZDB, em Lisboa, podem ouvir Eyes On the Lines, o mais recente álbum que saiu directamente da sua guitarra – e da sua boca.
Seria triste desperdiçar uma nota que havíamos feito no papelinho com as perguntas: “Fazer piada com Brian May”. Vocês sabem: o guitarrista dos Queen, que um dia resolveu abrir a boca e Deus sabe que nada fizemos para merecer isso. Mas Gunn, cuja garganta não é uma passadeira em ascensão com quatro oitavas à disposição, tem uma voz terna, colocada e suave que cabe bem na folk cristalina para onde a sua música se dirige. E fala assim também, num tom estranhamente acessível. Quando fazemos a piadinha referente a May, ri-se: “Devo dizer que sempre quis cantar, mas tinha receio de o fazer publicamente”, confessa.
As suas canções agora lembram os Rain Parade – quando ainda há pouco a música que fazia parecia demasiado antiga para servir de banda-sonora a um filme de John Ford. “Quando durante muito tempo só se toca guitarra, fica-se a pensar que não se pode fazer mais nada. Mas comecei devagarinho a pôr uma melodia aqui e ali, e quando senti que tinha experiência resolvi fazer um disco vocal. Em casa, em miúdo, costumava cantar. A minha mãe cantava muito – venho de uma casa muito musical. Mas o meu canto era uma coisa muito privada."
Estamos aqui a calcular a probabilidade de alguma vez terem ouvido falar em Steve Gunn e arriscamos que só 5% dos leitores já deram com o nome antes – sendo que o mais provável é ter sido numa referência a Kurt Vile: Gunn foi guitarrista deste nalguns concertos da digressão de Wakin' On a Pretty Daze (2013). São amigos, vêm da mesma terra, Filadélfia, e claro que ambos eram tolinhos que passavam os dias a ouvir música de manhã à noite. “Convidou-me a tocar com ele e a abrir os seus concertos, e foi uma ajuda grande na minha carreira. A primeira pergunta que me fazem em entrevistas é sempre sobre ele e muitos dos fãs dele conhecem a minha música, de modo que já estou programado para responder a isso, mas não o quero usar o nome dele porque não contribuí assim tanto para o que aquela banda fez. Só toquei nuns concertos."
Em vez de Kurt Vile, Steve Gunn prefere falar no que ouviu enquanto crescia. “Numa coisa tive sorte”, diz: “Os meus pais foram adolescentes nos anos 60, por isso cresci com muito rock'n'roll e muita soul. Muito cedo ouvi esse tipo de música no carro e em casa, e falei muito sobre música com eles, eles gostavam de falar sobre música."
As coisas funcionavam assim: o pai mostrou-lhe os Stones e os Beatles – era mais Stones do que Beatles, assinala o filho –, a mãe tinha a Motown como editora favorita. Em Portugal não há coisas destas: “Ouvíamos rádios de Filadélfia – havia um DJ (e aos 75 anos o homem ainda trabalha) que só passava singles e lados B. E havia também um programa de televisão, chamado American Dance Stand, que era filmado lá: à conta disso, os meus pais viram o Stevie Wonder em miúdo, essa malta toda."
O início da América
Gunn foi um bom miúdo, “certinho”, que fazia desporto e não faltava às aulas. Tinha 13 anos quando decidiu que queria fazer música, muito por causa da irmã mais velha, que "coleccionava discos obscuros de punk”. Num aniversário os pais acederam ao pedido de uma guitarra – mas ofereceram-na com a condição de Steve frequentar aulas. Não duraram muito, mas o hábito de ensaiar sim. Passem em qualquer disco antigo do rapaz e verão que vale a pena: a palavra virtuoso pode ser exagerada, mas o talento é inegável. Durante alguns anos, ele pareceu ser um herdeiro de Jack Rose (1971-2009) e Robbie Basho (1940-1986), que por sua vez eram herdeiros de John Fahey (1939-2001) – os músicos que mais fizeram pela guitarra enquanto ingrediente principal da música americana. A capacidade que a guitarra de Gunn tinha de nos levar para o início da América era tal que quando ele atendeu o telefone não imaginámos ouvir do outro lado uma voz humana, mas sim o rugido de um urso.
Rose e Basho foram muito falados no início deste século, quando a música de Fahey conheceu um estranho revivalismo. “Eu estava nessa festa”, diz Gunn. (Não há festa alguma, claro, é uma imagem.) “Estava lá, encostado à parede, timidamente a ver. Conheci o Jack, que já era uma inspiração e se tornou um amigo. Eu era o miúdo que ainda não podia beber. Queria ser como eles e eles ensinaram-me muito."
Nessa altura Steve Gunn já estava em Nova Iorque. Para trás tinham ficado anos de bandas de garagem a tocarem “mal mas depressa na cave lá de casa”, e também os anos da faculdade, em que, renegado o punk e descoberto o jazz, se fechou a praticar, cismando que havia de conseguir tocar o que ouvia. Não havia rock nem pop na vida do Gunn de então. Não havia sequer ambição de cantar. "O meu trajecto é curioso”, diz ele, “tive de aprender o mais complexo até perceber a simplicidade. Demorei muito tempo a apreciar a simplicidade porque tentei aprender sozinho as coisas mais complexas e difíceis." Em resumo: não o apanhavam a cantarolar uma cantiga de Beyoncé.
Tudo isso veio a compensar mais tarde – na amplitude da sua música, por exemplo, em que se ouvem por vezes ecos de música africana (em particular do Mali), indiana e do Médio Oriente; mas também na sua capacidade de trabalho. Há poucos músicos mais profícuos do que ele: tirando 2012, em que não editou nada, lançou um disco por ano entre 2007 e 2011. De 2013 para cá, a média aumentou para dois e em 2014 foram mesmo três.
Tudo isso para chegar a Eyes On the Lines, o disco em que as anciãs tradições desaguam em canções com princípio, meio e fim, em que o virtuosismo não é um fim em si mesmo, antes serve para aumentar a beleza de um tema como Night wander. Um disco que lembra uns Luna mais rurais, uns Violators, a banda do tal Kurt Vile, ou (ocasionalmente) uns Grateful Dead menos janados.
Gunn diz sentir-se grato “só por poder tocar e falar sobre música e sobreviver”. Caso um dia acabe “a viver numa caixa de cartão na rua”, assevera, já valeu a pena. Enquanto houver gente a encher concertos como o do GNRation e o da ZDB, pelo menos haverá uma refeição e um quarto de hotel à sua espera.