Jean-Pierre Léaud morre como um homem
A morte desembaraça-se dos rituais no ocaso do rei-Sol: La Mort de Louis XIV, de Albert Serra. Jean- Pierre Léaud, real, é realmente humano. O actor vai ser homenageado em Cannes.
Jean-Pierre Léaud, a criança turbulenta que desencadeou em Cannes, em 1959, a Nouvelle Vague (Os 400 Golpes, de François Truffaut), vai ser homenageado no domingo, 22 de Maio, na cerimónia de encerramento do festival, com uma Palma de Honra. Léaud tem 72 anos. O seu último filme, La Mort de Louis XIV, do cineasta Albert Serra, é exibido nesta edição do festival em sessão especial. Tem havido alguns sussurros, que em alguns casos se transformaram já em vozes: o festival quer apoderar-se do corpo de Léaud, meter-se com ele na História que quer contar, mas isso não lhe deu coragem suficiente para colocar o filme do catalão (o realizador, também, de O Canto dos Pássaros, de 2008, ou de Honra de Cavalaria, de 2006) numa secção mais oficial, a competição por exemplo, em vez de aproveitar-se apenas do espectáculo da História.
Não deixa de ser irónico que La Mort de Louis XIV trata de uma agonia, as duas semanas do ano 1715 em que cortesãs, médicos, eclesiastas, ministros desfilaram perante o leito de morte real enquanto a gangrena ia conquistando um corpo: a morte não precisa de se bater com rituais, não se deixa aprisionar pelo espectáculo, anula qualquer protocolo e encenação de poder.
Serra não se afasta nunca da cama onde se dá o crepúsculo do rei-Sol, seguindo as descrições de cortesãos que assistiram a esses últimos momentos, no caso concreto as Mémoires de Saint-Simon e do Marquês de Dangeau. Como se filmasse um inventário de pormenores, gestos, tentativas (falhadas) de encenação e de espectáculo que nunca vão poder acontecer – o corpo em decadência é que manda, e desembaraça-se disso tudo. La Mort de Louis XIV dá direito a que uma personagem tenha a sua morte privada – sempre coisa íntima e solitária. É justo que se diga que esta coerência descarnada, podendo ser obviamente um statement moral sobre o cinema (e sobre as fronteiras do espectáculo), dá origem a um filme, e não devemos ter medo da palavra, encantador: a impotência dos humanos perante a morte é comovente e hilariante – dá para atrever dizer que é dos filmes mais “humildes” de Serra, porque se trata também do confronto de um “formalista” e “troublemaker” (assim ele se define) com as suas idiossincrasias. Léaud é real: realmente humano, desaparecendo dentro da sua carne apodrecida.
A morte anuncia-se de forma gongórica no novo filme de Xavier Dolan. Xavier não pode estar surpreendido. Numa entrevista à Radio Canadá antes do festival, terá reconhecido que Cannes, que praticamente o criou e que em 2014 ajudou à festa Mamã com o Prémio do júri, sabe que “é muito duro, é severo” o que se joga na Croisette – mesmo se ao longo da sua carreira ele não tenha tido razão de queixa, até pelo contrário. “As pessoas às vezes podem ser vis. Elas adoram detestar, elas adoram odiar. Mas não sinto pressão alguma, porque estou orgulhoso do filme que fiz, e tenho uma vontade enorme de o partilhar”. Chama-se Juste la Fin du Monde, é o regresso à competição depois de um ano sabático, em que até foi jurado no festival, e para ele é o seu “melhor filme”. A reacção, como neste momento Dolan já sabe, é de ressaca (no mínimo…). Cannes, o que quer que essa palavra englobe, não concorda com ele, a julgar pelas primeiras reacções.
Pouca gente compreende, para começar, porque é que a seguir ao fôlego do filme anterior e às experiências com o melodrama, se encerrou num huis clos com uma peça de teatro de Jean-Luc Lagarce, Juste la Fin du Monde, escrita em 1990 quando o dramaturgo se sabia atingido pela Sida, que repete os temas, os sufocos e as decisões de vida e de morte de Tom na Quinta (2013), que também era baseado numa peça de teatro, de Michel Marc Bouchard.
Será sempre coisa privada de Dolan, a resposta, mas tem muito o ar de também ele ter sentido um efeito de ressaca no pós-Mamã e ter-se refugiado em território seguro, sem força para explorar horizontes. E, como para compensar, investiu em esforço, num cast de pompa - Nathalie Baye, Marion Cotillard, Léa Seydoux, Vincent Cassel e Gaspard Ulliel (é ele que regressa à família, 12 anos depois de ausência, para lhes anunciar que vai morrer) – que dirige como quem resume uma enciclopédia gráfica do grotesco. Que se vai afastando do espectador, emocionalmente, à medida que o tempo passa, o efeito do espectáculo reduzindo-se drasticamente. O resultado é um objecto anacrónico mas até mesmo por isso não se pode dizer que não haja aqui um enigma para decifrar: Dolan vai fazer 27 anos e já fez um filme de velho?
Tudo quieto na frente da Nova Vaga Romena. Depois de uma família presa no seu labirinto em Sieranevada, de Cristi Puiu, tivemos, em Graduation, de Cristian Mungiu (o novo filme na competição de Cannes de um vencedor da Palma de Ouro: 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, 2007), uma família presa no seu labirinto. Há um dado que se afigura indesmentível: estes cineastas persistem em ancorar, de forma extremamente segura e convicta, o seu cinema nos compromissos que, sem nos darmos conta, vão enformando o quotidiano. É como se a moral estivesse com eles, com os cineastas romenos.
Aqui, há uma família que se vai desmembrando com os esforços, e apesar dos esforços, de um pai em conseguir que a filha ganhe uma bolsa que a leve a terminar os estudos no estrangeiro. Vai-se desmembrando porque, de forma imperceptível, fronteiras vão sendo violadas. Tal como no caso de Puiu, Graduation começa e acaba com os mesmos sinais: de traição de valores, de cadeia de compromissos, de cumplicidades... Não é o fim do mundo, ninguém morre, é a vida, é assim - o filme passa o tempo todo a sussurrar-nos isso na sua convicta quietude. Mas essa quietude começa a denunciar-se, começa a ser antecipada pelo espectador, como quem passa a dominar as características de uma “escola”, o que torna a experiência menos ameaçadora do que devia ser.