A prosa é um cão e a poesia é um gato. Tal como os cães a prosa é fiel e escorreita, simples e útil; pode vir dum modo mais lento e langoroso, como um cão ao sol, ou saltitante a raiar a histeria, como um cão excitado, mas percebe-se sempre onde ela quer chegar, seja pelo focinho ou, como é mais certo, pela cauda.
Já a poesia é toda ela gato: difícil de aturar, inexpressiva para quem não a conhece, esguia, sinuosa e insinuante e, tal como a aristocracia, só serve para fazer o bonito.
Tal como os cães vadios das cidades, nós os prosadores ladramos noite fora, numa cacofonia de artigos, ensaios, reportagens, teses, crónicas e bloguismos tretudos: livros inteiros, bibliotecas inteiras submergidas de palavras e pó que soam e desaparecem sem marcar mais do que um momento em meia-dúzia de vidas; para depois passar o malandro do poeta, com o ar eternamente diletante dos gatos, e explicar uma geração inteira num só verso curto de doer.
Tal como com um cão, na prosa há a possibilidade de evolução: progride-se e aprende-se na escrita, treina-se a caneta como se treina um rafeiro e eventualmente vemo-la fazer truques, mas percebemos sempre como é que o cão fez aquilo. A magia da poesia é a oposta, é nunca percebermos como é que o gato se contorceu para se enfiar no buraco, através duma estreiteza em que não podia caber; não se ensina ninguém a ser poeta.
Os cães ladram às janelas mas o susto que provocam aos pombos dura meio minuto; são barulhentos e histriónicos e é por isso que as censuras lhes andam sempre em cima, são sempre os cães que levam as chineladas, mas a verdade é que para o ladrar surtir efeito tem de ser constante, e não há cão que aguente. O gato vai à janela uma vez e garante uma vida inteira de roupa estendida sem cagadelas. Como são discretos e malinos, e as ditaduras habitualmente espessas que nem toros de pinho, safam-se melhor aos coronéis do exame prévio enquanto atiçam a mudança.
Os cães e a prosa são rápidos e óbvios, exercem-se e exigem reacções imediatas, como um fogo no óleo ou a paixão. A poesia e os gatos são lentos e macios como um amor de velhos, maviosos como um beijo sem som e sem cuspo, um mero roçar de lábios secos numa cara rugosa, um investimento a longo prazo que queima não na chama, mas nas brasas disfarçadas pela cinza.
Os cães e a prosa são um vira, gostamos ou não, entramos na dança ou não; mas sabemos logo, antes do fim do primeiro acorde, se saltamos para a pista ou nos encolhemos com as matronas do primeiro anel. A poesia e os gatos são um tango, nem quem já está na pista começa imediatamente a dançar, há sempre um meio compasso de olhares entre parceiros, e os outros vão sentido o "bandoneón" a crescer lento nos músculos, para saber já a meio se sim, se vão dançar ou não.
Mas não penses, leitor que aguentaste até aqui, que esta prosa é uma carta de amor à poesia. Se me cortassem da memória o Voltaire, o Borges ou o Mário de Carvalho faziam-me pior do que se me arrancassem um olho, uma mão, uma perna; não tenho razões para gostar mais dos gatos do que dos cães e se me mandassem para a proverbial ilha deserta com um só livro, eu pedia dois. Mas esta arenga é uma queixa e tem uma pergunta final.
Se a pior coisa que se pode dizer a um bom fotógrafo é “está tão bonita que parece um postal!”, como é que o maior elogio que um prosador merece é que hoje a coisa lhe saiu “poética”?!