Olhos nos olhos, quero ver o que vai dizer
Castellucci foi como uma esfinge a fixar o rosto de cada um, no Teatro Municipal São Luiz e no Teatro Municipal Rivoli.
A fama de Castellucci como um dos mais importantes criadores teatrais do nosso tempo precede-o e por muito. A reputação deste espectáculo, devido à sensação que causou na estreia, em 2010, também. Ambas condicionam demasiado a recepção da peça. Oportunidade para debater as relações entre arte, religião e cidadania, debate sugerido pelo próprio título do espectáculo, este Sobre o Conceito do Rosto do Filho de Deus foi guarnecido, no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, e no Teatro Municipal Rivoli, no Porto, onde se apresentou a obra, por um completo programa de exegese e hermenêutica que permitiu ter mano-a-mano crentes, menos-crentes, descrentes, laicos, leigos e prelados.
A peça, porém, trabalha noutro regime, quando muito simultâneo desse da exegese. A lentidão do compasso da primeira parte, em que o pai idoso, sofrendo de incontinência fecal, é socorrido pelo filho, realmente invertendo os papéis de cria e criador, não é tanto uma questão de ideias quanto de sensações. O andamento da cena, o contraste dos excrementos com a brancura do cenário, o odor, as vozes chorosas do pai e do filho e, na segunda parte, a entrada em cena do coro de crianças, as cavilhas tiradas às granadas, o gesto de atirar o projéctil, a amplificação, em crescendo, do embate das granadas no rosto de Cristo, tudo isto, dizia, compõe uma máquina de sensações que afectam o espectador — e o comovem, aposto, mesmo quando o fazem rir ou sorrir — de modo concreto e particular.
Fazendo um esforço por pôr as interpretações prévias de parte, que resta do espectáculo propriamente dito? Um enigma — o rosto do filho de Deus, fixando o olhar nos espectadores, é uma esfinge que fixa a plateia, apresentando o espectáculo como uma sequência de actos e figuras a decifrar. Quando, no final, uma espécie de mini-Banksy opera no lugar do rosto de Cristo (cortado de Salvator Mundi, ou Cristo Benedicente, o óleo sobre madeira de Antonello da Messina pintado na segunda metade do século XV) o recorte da frase, em inglês, note-se, “you are my shepherd”, logo transformada em “you are not my shepherd”, e a frase fica a oscilar, como um pêndulo, entre os dois sentidos, completa-se a frase de desafio da esfinge, agora transformada em pergunta pela dualidade da afirmação.
Os enigmas, infinitamente interpretáveis, são para cada um decifrar à sua maneira, e longe de mim tentar estabelecer a verdade. A quem se destina a frase, quem está a fazer a pergunta, quem pode ser, ou não, o pastor que protege o gado ovino? Este é o enigma por trás do enigma. O criador deste espectáculo, que é e não é, ao mesmo tempo, mais uma ovelha do rebanho, põe-se no lugar do gato de Schrödinger, que está vivo e está morto ao mesmo tempo. Teatro de mecânica quântica, o de Castellucci? Por trás do olhar do filho de deus estará afinal o binarismo digital dos algoritmos que tudo fixam (como sugere o crítico Boris Groys no seu ensaio sobre a verdade na arte)? Fica ao critério de cada um — mas já se sabe o que acontece a quem não responde, acertando, às perguntas das esfinges.