Polónia: não é preciso ser muçulmano para ser vítima de islamofobia
Apesar de serem poucos, portugueses que trabalham ou estudam na Polónia não escapam à intolerância que afecta sobretudo os migrantes oriundos de África ou do Médio Oriente. Recolhemos alguns testemunhos.
João Paulo Presa já nem liga. Ainda esta semana, ia a caminhar, sozinho, numa movimentada rua de Lodz, cidade média do centro da Polónia e, ao atravessar a rua, passou por um grupo de rapazes que se uniu num coro: “white power” (poder branco), “Polska dla polakow” (“Polónia para os polacos)”. Ignorou. Seguiu o seu caminho.
Não quer alarmismo. Não vive “um clima de terror”. Gosta de morar naquele país, que o acolhe desde 2009. Trabalha numa multinacional, no sector de contabilidade e finanças, e até convive “mais com polacos do que com portugueses”, mas os insultos de teor racista ou xenófobo fazem parte do seu dia-a-dia. Já lhe aconteceu, várias vezes, ir com uma rapariga e ouvir alguém perguntar-lhe: “Como tem coragem de andar com um preto sujo?”
Apesar de, no mês passado, notícias darem conta de um suposto ataque racista a um estudante português, esta não é uma reacção específica contra portugueses, cuja presença, quase nula até à entrada da Polónia na União Europeia, em 2004, permanece insignificante. Há 1661 registados na secção consular de Portugal em Varsóvia (muitos quadros superiores integrados em grandes empresas) e cerca de mil estudantes a fazer intercâmbio (neste momento, estão 956, segundo a Agência Nacional Erasmus+ Educação e Formação). É um sintoma de uma intolerância que afecta mais migrantes oriundos de África ou do Médio Oriente, mas pode atingir até polacos com fisionomia diferente da estereotipada.“Tenho colegas portugueses, brancos, que por usarem barba são confundidos com árabes e insultados”, diz João Paulo Presa, que mais parece o músico norte-americano Lenny Kravitz.
Aumentam os crimes de ódio
De acordo com um inquérito feito em 2013 pelo Centro de Investigação sobre Preconceito, da Universidade de Varsóvia, 69% dos polacos não queriam não brancos a viver no país. Desde então, o ambiente piorou. E isso não se nota apenas nos protestos contra o acolhimento de refugiados, que têm levado milhares de pessoas a desfilar pelas ruas de diversas cidades da Polónia. Reflecte-se na estatística criminal. “A Procuradoria-Geral da República registou 835 crimes de ódio em 2013. Em 2015, 1548. As vítimas são, sobretudo, pessoas de etnia cigana (236), judeus (208), muçulmanos (192) e negros (166). Os muçulmanos e os negros são muito raros na Polónia, pelos que estes números são surpreendentemente altos”, aponta Michal Bilewicz, membro daquele centro de investigação, numa entrevista por e-mail.
Que se passa? A economia polaca tem crescido a um ritmo superior à média da União, mas nem toda a gente tem tirado proveito do “milagre económico”. “As pessoas sentem que a sua situação não está a melhorar tanto quanto esperavam e procuram bodes expiatórios”, diz Bilewicz. “Têm medo de ter de partilhar recursos materiais com migrantes muçulmanos. E esse medo mistura-se com o sentimento de superioridade étnica e com a retórica islamofóbica presente nos media (particularmente online) e no discurso político.”
Não é só a extrema-direita. “Os políticos de quase todos os partidos estão a servir-se da islamofobia para atrair eleitores”, avalia Bilewicz. Exemplo flagrante é Jaroslaw Kaczynski, líder do partido Lei e Justiça, conservador, nacionalista, agora no poder. “Afirmou que os muçulmanos são fonte de doenças e parasitas. Com isso, alimentou o medo e levantou dúvidas sobre as intenções do Governo anterior, que concordara em acolher refugiados.” Os jovens não estão imunes. “A nossa investigação sobre as eleições de 2015 mostra que o voto jovem (que incidiu particularmente em três partidos de direita) foi motivado pelo medo de muçulmanos”, sublinha. E, no seu entender, isto tem muito a ver com a “epidemia de discurso de ódio” na Net.
A Polónia é um país homogéneo. “O preconceito é sempre maior nas áreas etnicamente homogéneas”, avisa Bilewicz. “As pessoas não têm oportunidade de ter, por exemplo, vizinhos ou colegas de escola de outras etnias.” São mais permeáveis ao discurso de ódio. Correu mundo a capa da revista wSieci com uma imagem de uma mulher branca, vestida com a bandeira da UE, agarrada por mãos negras. “A violação islâmica da Europa”, lia-se, em letras carregadas. E o discurso de ódio propagou-se de tal forma na Internet, que o Gazeta Wyborcza, um importante jornal nacional, decidiu impedir comentários a notícias sobre refugiados.
“Estás na Polónia, falas polaco”
O PÚBLICO procurou nos últimos dias, entre portugueses, testemunhos dessa intolerância. Dezenas de e-mails foram chegando em resposta aos apelos lançados via correio interno, via departamentos de mobilidade de várias faculdades da Universidade do Porto e via grupo do Facebook “Comunidade Portuguesa na Polónia”.
Houve quem escrevesse só para manifestar desagrado por se estar a prestar atenção a este assunto, até porque a intolerância, em particular a islamofobia, tem crescido em toda a Europa. E até quem se esforçasse para desculpar reacções negativas, argumentando, por exemplo, que alguns estudantes Erasmus exageram no consumo de bebidas alcoólicas e se tornam histriónicos. Houve quem escrevesse para dizer que nunca se sentiu discriminado e o quanto aprecia a vida na Polónia. E quem tivesse escrito para partilhar desconforto ou episódios concretos, amiúde pedindo salvaguarda da identidade, não vá algum extremista identificar o autor e exercer represálias. Contactamos, depois, algumas delas.
O conhecimento da língua, atestaram várias pessoas, pode fazer diferença. “Por vezes sentimos que não cooperam muito connosco”, disse, por exemplo, Marco Cerqueira, 27 anos, especialista em novas tecnologias. “Não vivi situações com gravidade, mas tive algumas situações ridículas como cidadãos polacos benzerem-se ao perceberem que era estrangeiro, por estar a falar outra língua, como se estivessem a proteger-se de algo mau”, contou Pedro Bento, aluno do mestrado na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, que já este ano lectivo fez um estágio em Cracóvia.
A intolerância não é sentida de igual modo em toda a parte. “Em Portugal temos o litoral e o interior, na Polónia temos os grandes centros e as cidades periféricas. As mentalidades nas cidades periféricas, como as do interior, são muito mais retrógradas”, comentou Gustavo Palos, 28 anos, analista financeiro, que já viveu em Lisboa, em Évora, em Cracóvia e agora vive em Lodz e não sofreu qualquer ataque “para além do habitual: ‘Estás na Polónia, falas polaco’”.
Duas vezes atacado
José Carvalho Pereira, um gestor de projectos de 33 anos, sente-se bem em Varsóvia, onde mora desde 2010. “É possível que as pessoas possam ter algum desconforto ao partilhar o metro comigo caso ande um pouco mal vestido, mas será tudo. No meu ponto de vista, as pessoas de Varsóvia aprenderam a viver com estrangeiros e, em geral, tratam os outros por igual.” O mesmo não diz de Bialystok, onde fez Erasmus no ano lectivo 2006-2007 e aonde, a certa altura da sua vida, regressava com uma frequência quase semanal. Por duas vezes foi atacado. O pior aconteceu-lhe há dois anos. “Estava a jantar. O restaurante estava vazio. Um grupo de polacos sentou-se à mesa comigo. Cuspiram no meu prato. O que estava sentado ao meu lado começou a cabecear-me e a dar-me socos. Isto estava a acontecer com o staff do restaurante a olhar, sem fazer nada.”
Quando conseguiu fugir, correu para o balcão, em busca de protecção. “Pedi à empregada para chamar a polícia, pedido que me foi rejeitado. Pedi para me chamarem um táxi, pedido que também me foi rejeitado. Chamei o táxi e, até o táxi chegar, fiquei ao pé do balcão, pois tinha receio que a situação piorasse lá fora.”
Incitado a procurar um porquê para aquele ataque, escreveu: “A fisionomia/cor da pele creio que é um motivo muito forte. Eu não tenho pele escura, até porque nos últimos anos não tenho ido à praia, mas não é tão pálida como a dos polacos, é ligeiramente mais escura. A cor dos cabelos (castanho muito escuro) e dos olhos (castanhos) é muito diferente. E a fisionomia também é claramente diferente da deles.”
Bialystok é um dos pontos negros. Não é inusitado a minoria não-eslava, que representa menos de 1% da população, sofrer ataques. Membros da extrema-direita pintaram suásticas pela cidade, inclusive em sítios históricos judeus. Há pouco, a universidade recomendou aos estudantes estrangeiros que não saíssem enquanto decorria um evento nacionalista.
Há uma espécie de padrão. Os ataques, explica Bilewicz, são perpetrados, na maior parte das vezes, por “jovens inspirados pelos movimentos de extrema-direita e pela subcultura do futebol”. E a sociedade nem sempre reage. “Os protestos antifascistas são muito menos numerosas do que eram há 5 ou 10 anos. Não temos um movimento antifascista forte e numeroso como tem, por exemplo, a Alemanha.”
Tomar precauções
As autoridades conhecem os momentos de maior risco. E a informação passa, fazendo um trabalho de prevenção. Um exemplo: no dia 11 de Novembro de 2015, Dia da Independência, os professores pediram cuidado aos estudantes estrangeiros como Cristiana Santos, estudante de Línguas e Relações Internacionais da Universidade do Porto, que fez Erasmus em Varsóvia. A rapariga, de 19 anos, não saiu de casa.
Não é por acaso que a Polónia é o segundo mais popular destino de Erasmus dos portugueses. A experiência pode ser muito positiva. O tempo pode esgotar-se sem qualquer sobressalto. Diogo Moreira, estudante Ciências da Comunicação, fez Erasmus em Poznan este ano e só uma vez não se sentiu seguro. “Estava em Cracóvia, numa viagem organizada pela faculdade, quando, na principal praça da cidade, surgiu uma manifestação nacionalista. A baixa turística encheu-se rapidamente de skinheads e very lights vermelhos, o que tornou a situação bastante intimidatória. Como o nosso grupo era constituído por muitos alunos turcos, os professores que estavam connosco levaram-nos para o hotel onde estávamos alojados.”
A aparência conta mesmo. Que o diga, por exemplo, André Morais, estudante de Design da Imagem, de 26 anos, que fez Erasmus em Lodz. Usa barba e cabelo comprido. “Ao andar na rua, não me sentia bem-vindo.” Entre Setembro e Fevereiro, viu várias manifestações, anunciadas como “anti-islamização da Europa, em que se acabava por defender a saída da Polónia da União Europeia e a saída dos imigrantes da Polónia”. Participou em contra-manifestações, muito mais pequenas. A certa altura, ele e outros estrangeiros atiraram pela janela balões coloridos com mensagens como: “Mesmo assim, gostamos de vocês.”
Bilewicz teme que tudo se possa agravar. O Governo acaba de anunciar o fim do Conselho para a Prevenção da Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Conexas de Intolerância, de que ele era membro.“Dedicámos muito tempo pro bono a esse serviço público e agora vemos tudo ser destruído por uma decisão da nova primeira-ministra”, Beata Szydlo, lamenta. “Isto é demonstrativo da actual política do governo. Jaroslaw Kaczynski já disse abertamente que não vai apoiar qualquer forma de punição legal do discurso do ódio. Isso significa, basicamente, que a Polónia não vai acatar as recomendações políticas do Conselho da Europa e das Nações Unidas, que tanto apelam a que se proteja as minorias do discurso de ódio.”
A Polónia, neste momento, parece-lhe comparável com a Hungria. “Lá os políticos também se servem de retórica anti-imigrantes e os meios de comunicação social também estão a difundir informações sobre violência a envolver minorias. A única diferença é que a Hungria é um país de trânsito de migrantes do Oriente Médio para a Alemanha e para a Europa do norte e ocidental. A Polónia não é.”
A Europa partiu-se entre os que aceitam e os que não aceitam acolher mais refugiados e já há quem diga que os muçulmanos são os novos judeus. “O preconceito anti-semita permanece embora as comunidades judaicas sejam muito pequenas”, salienta. Na Polónia são 10 mil numa população de 36 milhões. Depois da Segunda Guerra Mundial, saíram em massa. Na sequência das perseguições anti-semitas de 1968, saíram muitos outros. “Nas últimas décadas temos tido ‘anti-semitismo sem judeus’ e agora temos ‘islamofobia sem muçulmanos’”, remata.