O alquimista da cerâmica
É fácil reconhecer os trabalhos de Querubim Lapa em Lisboa, lembra o especialista José Meco, porque foi um criador muito original. Um artista que compreendia a arquitectura como poucos, diz a historiadora de arte Rita Gomes Ferrão.
Querubim Lapa, o artista multifacetado que morreu esta segunda-feira, aos 90 anos, foi uma figura central de toda a produção cerâmica moderna portuguesa, sublinha ao PÚBLICO José Meco, historiador de arte especializado em azulejaria: “Foi um artista muito importante, que na cerâmica deixou o seu trabalho mais notável."
Nascido em 1925, Querubim Lapa começou a trabalhar em meados do século XX, acompanhando e dando forma ao primeiro movimento da azulejaria moderna portuguesa. “Até então predominava uma azulejaria Arte Nova, Arte Déco e uma produção nacionalista inspirada no passado. Nos anos 50 é precisamente quando se desenvolve uma produção mais abstracta, explorando também formas mais complexas da sua relação com a arquitectura.” Meco lembra que a grande importância da azulejaria portuguesa decorre da sua integração na arquitectura, e que a renovação da azulejaria coincide com a própria renovação da arquitectura portuguesa. "É curioso que o azulejo, uma das artes mais tradicionais, seja recriado através da arquitectura moderna."
No seu trabalho, foi fundamental a relação com a fábrica Viúva Lamego. Uma relação material, uma vez que Querubim Lapa aprendeu mesmo a trabalhar a cerâmica, não delegando a produção em mãos alheias. “Usava os trabalhos cerâmicos quase como um alquimista.” Trabalhava os pigmentos, claro, mas começou desde muito cedo a criar relevo, a moldar ele próprio o barro. José Meco refere como "notável" o painel de 1962 da Base das Lajes, nos Açores, ou outros dois baixos-relevos, de 1976 para a Embaixada de Portugal em Brasília. "São azulejos com uma textura muito elaborada e uma expressão pictórica notável."
Depois de uma passagem pelo neo-realismo, o historiador destaca a sua fase mais abstracta dos anos 60-70. “Mas ele foi um artista que se foi sempre actualizando, explorando novas possibilidades.” Por exemplo, no painel em frente à estação de comboios de Alcântara, de 1994, “brinca com as formas, com os volumes, criando elementos de perspectiva fantasiados por ele, que não são reais".
É fácil, lembra o especialista, reconhecer os seus trabalhos em Lisboa, porque ele foi um criador muito original. A sua morte, diz, "é uma grande perda para a nossa arte”.
Pensar como um pintor
O que torna Querubim Lapa “muitíssimo singular” na arte portuguesa do século XX é o facto de congregar duas valências – a da escultura e a da pintura –, algo “muito raro”, diz Rita Gomes Ferrão, historiadora de arte que se tem dedicado ao estudo da cerâmica modernista em Portugal, sobretudo a produzida até meados da década de 1970, começando no período entre as duas Grandes Guerras. “Ele pensava como um pintor – foi o que sempre quis ser, desde criança – mas ao mesmo tempo tinha os conhecimentos, a técnica, o saber fazer do escultor, coisas que aprendeu ao trabalhar com Martins Correia e Leopoldo de Almeida e que depois desenvolveu muitíssimo, seguindo a sua tendência para experimentar com os materiais, para explorar.”
A esta tendência se deve o seu fascínio pelo trabalho manual e dos materiais de que fala José Meco, defende esta investigadora do Instituto de História de Arte da Universidade Nova de Lisboa que teve longas conversas com o artista e que discorda da forma como ele próprio se definia: “Eu não acho que o Querubim Lapa fosse um pintor que se escondia atrás da cerâmica – ele era um pintor que se revelava através da cerâmica, até mais do que através da pintura.”
A esta ligação estreita entre a pintura e a escultura, que Querubim Lapa transpõe naturalmente para o seu trabalho cerâmico usando de “forma inovadora” a cor e os moldes, o artista junta outra “originalidade”: “Querubim conseguiu trabalhar com a arquitectura de forma absolutamente integrada. A relação que tinha com arquitectos modernos como Conceição Silva não era a da resposta a uma simples encomenda para decorar o interior ou o exterior de um edifício – era uma relação orgânica em que arte e arquitectura eram interdependentes.”
Um dos exemplos máximos desta interdependência é a antiga Casa da Sorte, no Chiado, que está hoje fechada à espera da sua reconversão em pastelaria. Francisco da Conceição Silva e Querubim Lapa, que haveriam de trabalhar muitas vezes juntos dentro e fora do país – pense-se, por exemplo, na já desaparecida loja Rampa –, deram-na por terminada em 1963. “A Casa da Sorte é um objecto pequeno, mas uma jóia do ponto de vista da concepção arquitectónica. O Querubim pensa o revestimento cerâmico em função do tamanho maior das placas que os fornos da Fábrica Viúva Lamego eram capazes de cozer e é a partir dessas placas que ele vai usar que o Conceição Silva desenha todo o espaço. A maneira como ele concebe os revestimentos, os murais escultóricos, é extraordinária.” Como extraordinário é o sentido de obra de arte total que emana deste projecto cuja preservação hoje tanto preocupa Rita Gomes Ferrão: “Na Casa da Sorte não se pode destruir uma parte e manter a unidade. Hoje quem lá passa, com o edifício fechado, não pode deixar de temer pelo futuro daquele espaço e do trabalho destes dois grandes nomes do moderno. Os novos proprietários prometeram preservar, mas quem olha lá para dentro percebe que parte do mobiliário desenhado pelo Conceição Silva já foi destruído.”
Rita Gomes Ferrão não é a única preocupada com o futuro deste conjunto que reflecte a constante ligação entre arte e arquitectura, algo comum entre os modernos (está longe de ser um exclusivo de Querubim e Conceição Silva). Rui Afonso, historiador de arte e do design para quem a obra de Querubim Lapa é mais do que familiar, lembra que boa parte dos espaços comerciais da Baixa renovados na década de 1950 desapareceram ou foram completamente desvirtuados. “Falta sensibilidade aos novos proprietários para reconhecer e respeitar este património moderno que é importantíssimo e falta visão à câmara de Lisboa, que tem tendência a classificar muito tardiamente, quando já não há quase nada a salvaguardar, e que fiscaliza pouco”, diz.
A facilidade que Querubim Lapa tinha na relação com os arquitectos decorre, defende a historiadora Rita Gomes Ferrão, da sua “invulgar noção de espaço”. As suas obras encaixavam-se sempre de maneira correcta, diz. “Ele compreendia bem a linguagem da arquitectura, sabia o que fazer num painel que era suposto ver de longe [como o da reitoria da Universidade de Lisboa], num revestimento para ser visto em trânsito [O Terraço, Avenida da Índia] e noutro que era suposto apreciar no detalhe, bem de perto, como no caso da pastelaria Mexicana e noutros interiores.”
Coleccionador de cerâmica oriental, em particular de porcelana chinesa, homem interessado na história da azulejaria, segundo José Meco, Querubim Lapa tinha um genuíno interesse pela forma como, séculos antes, se encontrara solução para determinado problema técnico relacionado com a produção deste ou daquele objecto. “Ele procurava incessantemente soluções, como no caso dos seus esmaltes, que testou durante anos antes de usar. Chegava a ser obsessivo nesta busca pela perfeição das coisas.”
Com uma “energia incrível” e um “sentido de humor particular”, o artista permanecia muito desperto para tudo o que se passava à sua volta, procurando sempre novos caminhos para a sua arte. Essa procura passava pelos seus cadernos de desenho, presença constante em casa e no atelier. “Desenhar era para Querubim Lapa um acto doméstico, quotidiano. Ele explicava tudo a desenhar.”