O obscuro objecto do desejo

Pedro Cabrita Reis revisita o desenho de modelo.

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A sabotagem da ordem geométrica do mundo José Manuel Vasconcellos

Pode-se começar esta crítica relembrando que, no princípio, era o cânone. Princípio da história, claro, e mais especificamente da arte europeia e (mais tarde, por extensão) ocidental. Um cânone que foi primeiro egípcio e depois grego. Um cânone que, até aos romanos, proibia a representação do nu feminino.

Mas tudo isso está muito, muito longe de nós. Ainda antes da nossa era o nu feminino aparece e instala-se no lugar que ainda ocupa nos dias de hoje. É, como já acontecia em tempos antigos (e nem falemos do que veio a seguir), significava a materialização do que era desejável. Através do véu da pintura, da arte, era possível adquiri-lo, e através de um subterfúgio perfeitamente aceitável (aquele que fundamenta qualquer colecção de arte) deleitar-se na sua contemplação. Nesta linha de pensamento, todas as associações são possíveis, aceitáveis, lógicas.

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José Manuel Vasconcellos

É neste sentido que Pedro Cabrita Reis aceita o convite para realizar uma exposição individual de desenho em Lisboa, declarando, conforme contou ao PÚBLICO em entrevista na altura da inaguração, que decidira então escolher o nu feminino para trabalhar. Consciente do peso da tradição que incide sobre este tema, resolve tratá-lo como uma forma geométrica, um dado adquirido, uma cristalização definida antes da história para um todo o sempre hipotético. Dito de outro modo, apropria-se de um modelo, de um cânone. Que esse modelo sirva há dois mil anos para definir a beleza parece não ser coisa que o inquiete demasiadamente. Antes pelo contrário. Cabrita Reis, que usou as sessões com modelo vivo para a fotografar interminavelmente, escolhendo mais tarde trabalhar esta imagem até obter um contorno único, anónimo, sem desvios expressionistas (mencionou também, na mesma entrevista, que este foi também o método utilizado para desenhar uma série célebre de autoretratos há alguns anos), associa nestes desenhos estas formas com outras, declaradamente resultantes de uma geometrização abstracta do desenho comum noutras práticas artísticas que não as relativas às ditas belas artes. Circunferências, caracteres tipográficos e números acabam por possuir o mesmo peso simbólico que a figura feminina, recordando-nos que tudo não passa de uma convenção. Nessa tomada de consciência, quebra-se, mesmo ali, o eventual desejo burguês que assimila cada corpo a um bem de consumo.

Se estes desenhos ficassem por aqui, eles não passariam da ilustração redundante de uma prática do desenho. Mas não é isso que acontece. Cabrita Reis insere depois em cada desenho pequenos elementos de cor, mancha, indeterminação e informalidade que, mais do que marca autoral apropriada de pinturas e desenhos realizados em outros períodos da carreira do artista, significam a intrusão na ordem geométrica do mundo de um princípio de desordem que sabota o próprio objectivo da utilização do cânone. Talvez não seja aqui demais recordar que este último é uma lei, uma norma que visa conformar a prática artística e a própria criatividade individual de cada um. O cânone significa, em última instância, a anulação da liberdade do artista, e é por isso que a sua adopção forçada não tem lugar nas sociedades ocidentais contemporâneas que, todas elas, se regem por normas baseadas em princípios iluministas. A prática do desenho de modelo em meio universitário, como bem sabe o artista, visa assim hoje unicamente o domínio de uma práxis do desenho que voará depois com cada aluno, espera-se, para outras paragens. Ou talvez não — a liberdade de criar é hoje (quase) total.

Por isso, não nos espantaríamos que esta série de excelentes desenhos constituíssem, afinal e também, uma crítica implícita ao ensino artístico tal qual Cabrita Reis o conheceu praticamente ao lado desta galeria, na ESBAL. Às normas geométricas e canónicas, o artista contrapõe o informe, essa pulsão vital de que Georges Bataille tão bem falou e que, para este escritor, não existe sem ser em relação dialética com a forma definida, um relação que tem a ver com o desejo de “beleza convulsiva” tão caro aos surrealistas. E que tão pouco, ou nada, tem a ver com a beleza académica.

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