A ideia de que vivemos sob a ditadura do “politicamente correcto” não resiste a esta experiência: diante de uma plateia cultural e socialmente heterogénea, pede-se que levante o braço quem defende a “political correctness” e verifica-se que é diminuto o número de braços erguidos. Quem conta esta experiência é um académico americano chamado John K. Wilson, num artigo escrito no ano passado, onde actualiza e reafirma a sua tese de 1995, num livro intitulado The Myth of Political Correctness. The Conservative Attack on Higher Education. Para a maioria, ser politicamente correcto significa aderir a um hipermoralismo, a um puritanismo da linguagem, a um fundamentalismo ético. John K. Wilson não nega que houve uma revisão da linguagem no sentido de adequá-la a novos quadros ideológicos e a novas concepções culturais e sociais (reconhecendo, aliás, que não é possível excluir as idiotices de gente intolerante), mas os seus argumentos pretendem demonstrar que as denúncias do politicamente correcto como um fanatismo que tomou conta da Universidade e dos media, ameaçando a cultura americana, são reacções muito exageradas de uma “conservative correctness” a que John K Wilson também chama “patriotic correctness”. Este debate, cujos argumentos de um lado e do outro são difíceis de avaliar na sua adequação à realidade para quem está fora do contexto, torna bem claro que as operações de correcção política não consistem em querer impor uma linguagem artificial e cheia de maquilhagem contra uma linguagem neutra, pura e natural, como a água que jorra das fontes. Tais operações partem precisamente da ideia – incontestável – de que há regras gramaticais, usos e formações lexicais que se sedimentaram como históricas cristalizações ideológicas e culturais. O equívoco do politicamente correcto é o de que as pode destruir, quando elas têm é de ser desconstruídas (evoco a “desconstrução”, à maneira de Derrida, que está longe de ser o mesmo que “destruição”). Toda esta discussão tem a vantagem de nos reconduzir à política enquanto questão exclusiva dos seres falantes. Os regimes totalitários tiveram a pretensão de pôr a língua ao serviço dos seus desígnios, de a manipular até ao ponto de enxertar nela um novo idioma. Veja-se o estudo magistral que o filólogo alemão Victor Klemperer publicou em 1947, sobre a LTI, a Lingua Tertii Imperii, a língua do IIIº Reich. Mas não se pense que as democracias liberais não impuseram também uma língua ao serviço da mentira política. Basta pensar no uso que se faz de palavras como “crise”, “reforma”, “colaboradores”, “recursos humanos”, “empreendedorismo”, etc. Mas foi o comunismo soviético que se identificou totalmente com um “linguistic turn”, uma viragem linguística, ao ponto de querer governar através da linguagem e proceder a uma “linguistização da sociedade”. É esta a tese de um filósofo russo-alemão, Boris Groys, num livro de 2006 intitulado Das Kommunistische Postskiptum. Logo no início do livro, podemos ler esta asserção: “A revolução comunista é a transcrição, ao nível da praxis social, do medium do dinheiro [através do qual opera a economia] para o medium da linguagem [através da qual funciona a política]”. O comunismo pode assim ser definido como um fenómeno discursivo. E a União Soviética, diz Groys, “concebia-se como um Estado onde só a filosofia governava”, realização histórica da República de Platão, em que linguagem é elevada a medium de poder total. O politicamente correcto não é uma ideologia, como pretendem muitos ideólogos conservadores, mas tem uma forte dimensão platónica.
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