Jérôme Bel quer que a sua dança seja uma tentativa, nunca uma certeza
Em Gala, mais uma vez, Jérôme Bel reclama a dança como um lugar de todos e rejeita uma dança contemporânea que, acredita, se canonizou tanto quanto a clássica, não respeitando a diversidade social.
É certo e sabido que vivemos num mundo de especialistas, de uma valorização social e até mesmo financeira proporcional ao aprofundamento em dado nicho. Quanto mais se sabe sobre o que os outros não sabem, melhor para a vida de cada um. Já o cantava Laurie Anderson em Only an Expert (álbum Homeland, 2010), lembrando que só os experts providenciam soluções para os problemas que apenas eles compreendem totalmente. Pois, e o que tem isto que ver com um espectáculo de dança? No caso de se tratar de uma criação de Jérôme Bel, tudo.
Gala, peça estreada pelo provocador coreógrafo francês em 2015, trata precisamente de abolir essa ideia de que a dança cabe apenas aos bailarinos profissionais, como se não fosse, em paralelo, uma manifestação popular de celebração em que cada um pode sentir-se envolvido. Gala dá o palco a populares que, a serem especialistas, sê-lo-ão em qualquer outra coisa – seja ela física nuclear, cozinha nepalesa ou toques numa bola. Ou seja, não há gradação nem hierarquização dos participantes (previamente seleccionados e ensaiados), misturados com um par de profissionais (em Lisboa, serão Mariana Tengner Barros e Jonas Lopes), chamados à cena para evitar que a peça possa ser simplesmente entendida como uma paródia gratuita da dança contemporânea, ao mesmo tempo que a sua presença dignifica os restantes.
Entre esta quarta-feira e 29 de Abril, no Teatro Maria Matos, em Lisboa, é a isto que assistiremos. Gente de todas as idades, origens e estratos sociais que quer dançar e que, por três dias, o fará num palco onde poderá responder com o seu arsenal técnico e criativo a deixas como “ballet”, “valsa”, “improvisação em silêncio durante três minutos”, “Michael Jackson”, “agradecimentos” ou “companhia”.
O encanto pela fragilidade
Aquilo a que assistimos é, portanto, uma forma dançada de inclusão e de recusa das práticas institucionais do mundo da dança – algo que Jérôme Bel já havia antes explorado em Disabled Theater, ao trabalhar com portadores de deficiência mental, ou em Cour d’Honneur, ao escolher os intérpretes entre a assistência. A semente inicial viria de um workshop com amadores em Seine-Saint-Denis, promovido pela actriz e cantora Jeanne Balibar. “Aquilo que sempre me interessou nos amadores”, confessa Bel ao PÚBLICO, “é a sua fragilidade, o facto de que ao contrário dos profissionais que se tornam mestres das suas respectivas práticas, os amadores estão desarmados. As práticas amadoras assentam no princípio do prazer, do desejo. Cada amador está a revelar-se e nunca se realizará como os profissionais.”
E é neste ponto que Jérôme Bel assume a sua especial identificação com estes grupos de amadores que integram os elencos de cada paragem de Gala: também ele, diz-nos, é alguém que está a tentar. “Enquanto artista, não busco a mestria do meu ofício que é o teatro; pelo contrário, inclino-me para uma ideia experimental do teatro em que cada uma das minhas obras deverá conduzir-me até algo que não domino, mesmo que não tenha sido sempre esse o caso”, acrescenta.
Por outro lado, Gala, na sequência das peças anteriores, é assumida por Bel como mais uma resposta à relação cada vez mais agoniada que confessa ter com a maioria da produção da dança contemporânea. Em 99% dos casos, atira, “os bailarinos têm entre 20 e 35 anos, são elegantes, estão em topo de forma e são razoavelmente bonitos, quando não extremamente bonitos”. “Isso parece-me muito limitativo para uma prática em que a ferramenta é o corpo.” Um corpo que de tal forma se tipificou que passou a recusar a diversidade, impondo um modelo que Bel diz não deixar nada a desejar à representação canónica da dança clássica.
Ao acreditar que o papel dos coreógrafos mais marcantes da história da dança moderna, “aquela que começa com Isadora Duncan, Nijinski, etc.”, deverá implicar a encenação em palco de uma determinada ideia do mundo, Jérôme Bel chama a si esse lugar de diversidade e de uma representação que não tenta fabricar uma qualquer idealização da sociedade, antes procura respeitar a sua natureza. Em vez de achatar e simplificar, propõe expandir e complexificar, trazer para dentro do palco uma paleta humana tão aparentemente aleatória e rica que a dança não tenha um figurino, um corpo pré-definido.
A presença de amadores ao lado de profissionais serve não apenas para que o espectáculo de Bel não seja entendido como simples piada, como uma paródia da dança contemporânea, mas também que a comparação não sirva para diminuir os amadores, antes afirmando que toda a forma de dança é válida, toda a proposta de subir a um palco para se apresentar perante um público é merecedora de respeito. A isto junta-se a ideia de risco que Bel acolhe com regozijo e que o faz procurar montar peças que, por muito que possam colapsar e revelar-se um erro, não prescindam de propor algo de diferente. Para o coreógrafo, seguir caminhos que já estão mapeados é uma perda de tempo, saber de antemão onde vai chegar (mesmo que sem um preciosismo absoluto) apaga qualquer gesto criativo à medida que é desenhado.
Ao introduzir a diferença em Gala, Bel sublinha também a individualidade, “a singularidade de cada um dos membros daquela comunidade”. Tratando-os como iguais, permite-lhes assumirem as suas diferenças, ditadas com naturalidade por percursos de vida, idades, pesos, agilidades, formações e entendimentos da dança impossíveis de sincronizar. A dança, em Gala, é uma festa. E estão todos convidados.