De Caminha ao caminho
Quando à esquerda comemoramos o 25 de Abril comemoramos a democracia mas também o estado social.
Há três anos publiquei aqui uma crónica dedicada a um caso que tinha passado quase despercebido. Em Caminha, geograficamente o primeiro município do país, um grupo de militantes e ativistas de esquerda tinha começado a preparar uma candidatura conjunta à Câmara Municipal. Quando as notícias chegaram a Lisboa, as direções nacionais dos partidos em causa encarregaram-se de acabar com tais pretensões. O título da minha crónica era "Eles não querem" e, na altura, explicava-se a si mesmo.
Foi-me chamada a atenção para esta crónica antiga por alguns jovens nas redes sociais que rapidamente notaram o quanto as coisas mudaram entretanto. Depois de anos de incomunicabilidade entre as esquerdas portuguesas, os seus partidos finalmente entenderam-se para o tipo de acordo de incidência parlamentar que na altura juravam a pés juntos não querer celebrar.
É um progresso considerável, que esperemos em breve permita com naturalidade fazer algo tão simples como a candidatura conjunta que então foi negada aos militantes de Caminha. Mas vale a pena assinalá-lo hoje, 25 de Abril, quando juntos descermos a Avenida da Liberdade, para lembrar como passámos tão perto da precipício. Depois de quatro anos de política austeritária, foi por muito pouco que não acabámos com um governo de bloco central que certamente teria em cima da mesa um compromisso de alteração da Constituição para nela esvaziar os direitos económicos e sociais. O caminho conjunto que as esquerdas fazem hoje na governação não só permite reverter algumas das piores políticas dos últimos anos como impede este esvaziamento. De outra forma poderíamos estar hoje a comemorar os 40 anos da Constituição como os últimos em que a sua forma substancial, no que diz respeito ao estado social, seria a mesma.
Para quem pense que exagero, basta remeter para o discurso que Marcelo Rebelo de Sousa fez a semana passada no Tribunal Constitucional (tanto quanto sei, foi o constitucionalista Jorge Reis Novais quem primeiro identificou e analisou esta importante comunicação). Nesta curta peça de nove minutos, e que foi lida a partir de um texto escrito, pensado e deliberado, o Presidente da República diz que um dia se há de discutir a inserção na Constituição de "um estado de exceção económico-financeiro" que permita guiar a jurisprudência sem recurso aos princípios gerais que, basicamente, permitiram ao Tribunal Constitucional fazer frente ao pior da austeridade. A conclusão é clara: o projeto de eviscerar os direitos económicos e sociais da Constituição ao mesmo tempo que se lhes presta umas falinhas mansas continua bem presente no espírito da direita portuguesa. O seu principal intérprete é agora Marcelo Rebelo de Sousa, que chegou com relativa facilidade a presidente graças também às hesitações e taticismos das direções partidárias da esquerda portuguesa.
Quando à esquerda comemoramos o 25 de Abril comemoramos a democracia mas também o estado social, porque o segundo é a materialização da primeira, e ambos estão longe de estar garantidos. Ao fazermos hoje o nosso caminho conjunto reflitamos nos erros e acertos de percurso como melhor forma de continuar a comemorar o 25 de Abril na sua plenitude por muitos anos futuros.