No prosseguimento de uma programação de clássicos que tem sido a coisa mais importante na exibição cinematográfico nos últimos anos, a Leopardo Filmes apresenta no Nimas, em Lisboa, e no Teatro do Campo Alegre, no Porto, um ciclo de “Grande Cinema Russo, do mudo à perestroika”, com 19 títulos. São muitos filmes,, correndo o risco de se reiteram uma outra vez as atenções nos mais conhecidos, de Eisenstein ou Vertov, em detrimento de outros que merecem ser conhecidos. Impõem-se alguns pontos prévios. O qualificativo deve antes ser “soviético”, não só porque este foi o cinema da URSS como também porque, no caldeirão das diferentes nacionalidades, por exemplo um Dovjenko é hoje reclamado como “O” cineasta nacional ucraniano. Por outro lado, e sendo óbvio que numa operação comercial não se pode pedir a representatividade de um ciclo de cinemateca, o certo que é que sendo esta operação tão vasta e tão complexa a história do cinema soviético, há zonas omissas. Por exemplo, os primeiros filmes do “realismo socialista” estaliniano, como O Caminho da Vida de Nikolai Ekk e Chapaiev de Georgi e Sergei Vassiliev, são muito bons; são da maior importância histórica os filmes do “degelo” na época de Krushev e da “denúncia” dos crimes de Estaline, Quando Passam as Cegonhas de Mikhail Kalazatov e A Balada do Soldado de Grigori Chukrai; enfim, permanecem ausentes aqueles casos de cinema dos anos 60 aproximáveis do que a Oeste eram as novas vagas, o maravilhoso primeiro Andrei Konchalovski, A Felicidade de Assia (dele são apresentados os bem mais conhecidos O Tio Vânia e Siberíade) ou os de Kira Muratova.
A propósito do ciclo pode-se ser hiperbólico com O Homem da Câmara de Filmar e Ivan, O Terrível, dois que tenho entre os meus favoritos absolutos, mas isso é redundante. Bem mais importante é chamar a atenção para um imenso autor de posterior reavaliação crítica, Boris Barnet, e em concreto para A Casa na Praça Trúbenaia. Eisenstein, Vertov, Dovjenko ou Pudvkine eram formalistas, filiados no construtivismo, e cultores da montagem. Barnet era um cineasta de um incrível rigor formal mas não um formalista, e de uma liberdade desconcertante. Os seus filmes escapam a classificações, desde logo de géneros: comédias? Comédias sentimentais? Melodramas? Se compreendo as razões porque tanto põem nos píncaros o assombroso À Beira do Mar Azul, ainda assim é A Casa na Praça Trúbenaia o seu filme que prefiro. Nele coexistem dois aspectos fulcrais: a tal imensa liberdade (Barnet começava um filme “lutando” com os espartilhos do argumento, que era a etapa pela qual o regime mais exercia controle ideológico) mas ao mesmo tempo tinha um apuradíssimo sentido formal do contraponto. Nesses anos 20 só um outro cineasta teria um tão agudo sentido da precisão contrapontística, Buster Keaton! E quando se vê na parte inicial do filme a casa com as luzes que se apagam, quando depois se vê no interior as escadas e as pessoas que vão saindo é difícil não pensar no Playtime de Tati. Só que em Barnet há também os sentimentos e a patente filiação em Tchekov. Que extraordinário cineasta!
Uma nota ainda, para os filmes do casal Larissa Shepitko/Elem Klimov. Que caso mais insólito, o de uma e outro terem feitos dois dos extraordinários filmes de guerra, Ascensão dela e Vem e Vê dele. Passa o primeiro mas dele sim um outro, Adeus a Matiora. Melodrama conjugal, Tu e Eu de Shepitko, contribui para compor o quadro. Ela e ele foram dois cineastas agónicos que muito importa (re)descobrir.