O comboio fantasma de Sérgio Tréfaut
A partir de memórias de sobreviventes do Holocausto, o realizador constrói um filme que escapa a géneros assombrado por aqueles que já não estão.
Ensaio, documentário, ficção? Sérgio Tréfaut (n. 1965) deixa essa definição ao critério de quem vê Treblinka, o seu regresso à competição do IndieLisboa – onde tem sido presença regular e que venceu em 2014 com Alentejo, Alentejo e dez anos antes com Lisboetas. É certo que o projecto inicial do cineasta partiu da ideia de um documentário sobre um sobrevivente dos campos de extermínio nazis, mas, explica, sem a utilização de materiais de arquivo. "Há algo na história desse tratamento que já quase se esgotou e quis tentar o desafio de falar desse horror sem a utilização dos arquivos”, diz o realizador.
O projecto começou como um documentário mais ou menos tradicional sobre um sobrevivente de Auschwitz – homenageando a cineasta e escritora Marceline Loridan-Ivens, viúva do documentarista Joris Ivens – para se transformar aos poucos noutra coisa, mais estilizada: um filme menos sobre o horror do Holocausto e mais sobre “o universo dos sobreviventes”.
“Em vez de fazer um documentário num apartamento, quis fazer um filme num local que evocasse os fantasmas que vivem à volta dos sobreviventes, quotidianamente,” diz Tréfaut ao telefone de Serpa, onde está em plena rodagem da sua adaptação de Seara de Vento, de Manuel da Fonseca. “As pessoas que sobreviveram em todos os lugares onde houve extermínio ou assassinato em massa durante um período prolongado - sejam eles Auschwitz, Treblinka, a Síria, o Ruanda, a Faixa de Gaza... Vivem num universo rodeado de pessoas que já lá não estão. Têm um passado que não vemos, mas que está sempre à volta delas. Esse é sempre o meu ponto de partida.”
Às memórias de Loridan-Ivens, Tréfaut foi buscar o cenário onde tudo se passa: “Num dos seus livros, ela diz que, mesmo passados 70 anos do final da Segunda Guerra, é como se todos os comboios a levassem a Auschwitz.” Daí que este percurso fantasmático decorra durante uma viagem de comboio trans-siberiana, onde o cineasta filma a presença física de Isabel Ruth e Kirill Kashlikov, deixando-se guiar pelos actores e por um texto menos conhecido que o cineasta descobriu durante a pesquisa: Sou o Último Judeu, memória que o judeu polaco Chil Rajchman escreveu depois da sua evasão de Treblinka em 1944, mas que apenas foi publicada postumamente em 2009. “O livro impactou-me muito, mais do que por exemplo a obra do Primo Levi [Se Isto é um Homem] e resolvi encontrar uma solução para que fosse o fio condutor do filme", diz Tréfaut.
A partir daí, “não sei”, ri-se o realizador. “Se é ensaio, documentário, ficção, não me importa, cada um que o defina como quiser”, na certeza de que Treblinka se inscreve na dimensão mais “experimental” do cinema de Sérgio Tréfaut, mais próximo da ficção inspirada em caso real de Viagem a Portugal (2011) ou do sensorialismo de quem olha de A Cidade dos Mortos (2009).