Administração de hospitais e gestão em saúde
No momento que se discute o Pacto para a Saúde, urge repensar o papel dos prestadores de cuidados e o seu modelo de gestão.
A par de outros Países Europeus, como a Itália, Grécia e Espanha, Portugal apenas iniciou o desenvolvimento de um sistema de saúde de cariz universal em fins dos anos 70 do século passado. Este período fundacional tem sido caracterizado como de "ausência de uma cultura de gestão apropriada à especificidade da saúde". Assim, cedo se compreendeu que, o desenvolvimento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) passaria pela capacitação de quadros intermédios e superiores.
A especialização em Administração Hospitalar, ministrada pela Escola Nacional de Saúde Pública, e a admissão dos seus diplomados à carreira em Administração Hospitalar corresponderam a esta opção da política de saúde. O bom contributo da Administração Hospitalar para a criação, organização e qualificação dos hospitais públicos (e privados) é irrefutável, com o também o é no exercício da gestão noutras unidades de saúde e organismos do Ministério da Saúde.
Contudo, na última década, os hospitais portugueses sofreram um processo de empresarialização e desregulação, tendo-se menorizado a matriz de administração hospitalar em favor de um modelo discricionário de admissão aos lugares de gestão intermédia e de topo sem cuidar de assegurar os necessários conhecimentos, capacidades e competências. Ora, importa compreender que tal opção apenas teve espaço para ser implementada pela própria debilidade da matriz vigente. Por um lado, o elevado grau de centralização da decisão nos organismos centrais impedia o desenvolvimento das organizações. Por outro, a crescente complexidade da prestação de cuidados não foi acompanhada por uma sofisticação dos programas de formação contínua, nem pela exigência no recrutamento, seleção e progressão dos diplomados em administração hospitalar.
Assim, esta fragilidade e incapacidade de reforma abriu caminho para um modelo gestionário politizado, repleto de profissionais sem formação nem especialização em saúde adequadas e, consequentemente, incompetentes. Hoje, muitas das organizações de saúde são geridas por curiosos nos mais variados níveis hierárquicos, não sendo os mesmos responsabilizados pelos resultados da sua (in)acção. Este facto tem vindo a ser reconhecido pelo Tribunal de Contas, e mesmo pela CRESAP, associando-se o insuficiente desempenho dos hospitais e dos agrupamentos de centros de saúde à fraca preparação da gestão e dos dirigentes. Os resultados deste processo são sobejamente conhecidos, tendo a Administração Central sido compelida a “administrar” os prestadores de cuidados de saúde como “suas repartições”. Ou seja, passada mais de uma década, a empresarialização, associada à desregulação profissional e à gestão medíocre e impreparada, resultou no retorno à estaca zero da autonomia.
Se há mais de dez anos, o modelo não satisfazia, hoje o modelo é obsoleto e incapaz de responder aos desafios que as nossas organizações enfrentam (e.g. transformação digital da sociedade; evolução demográfica; potenciais alterações dos valores políticos e sociais; novos modelos de gestão e liderança da saúde; estagnação da despesa pública em saúde; impacto das novas tecnologias na gestão do conhecimento; transformação do paradigma de tratamento de várias doenças com o aumento do foco na prevenção, medicina personalizada e experiência do doente). Neste enquadramento não é possível desenvolver e/ou inovar o modelo de serviços de acordo com as necessidades e exigências da comunidade e dos profissionais de saúde, tal como melhorar a qualidade e a eficiência das instituições de saúde.
Apenas se pode responder a estes desafios com opções estratégicas claras. Repare-se que não é apenas pela otimização da operação que conseguiremos avançar para o sistema de saúde de amanhã. A empresarialização sem uma visão de saúde e inovação apenas perpetuará o modelo vigente. Para reinventar a prestação de cuidados de saúde é necessário preparar os profissionais de saúde e a gestão em saúde para desafios cada vez mais complexos. Apenas com profissionais altamente preparados e suportados por uma liderança competente será possível desenvolver o SNS.
Neste contexto, qual é o papel da Administração Hospitalar?
O progresso do SNS e das suas instituições passa por uma liderança coerente e uma gestão capaz. É por demais evidente que, a gestão em saúde tem especificidades que importa acautelar e que dificilmente são adquiridas por uma formação académica genérica em gestão ou pela formação em áreas da prestação de cuidados de saúde.
O sistema de saúde e, particularmente os hospitais, tem sido reconhecido como das mais complexas áreas de gestão. Longe vai o tempo em que se acreditava que as organizações de saúde eram tão simples de gerir que poderiam ser facilmente liderados por profissionais não preparados.
Vejamos: o sistema não necessita de produtores parciais de cuidados de saúde unicamente focados em eficiência imediata. O sistema necessita de gestores que conheçam a globalidade da operação e que promovam uma rede colaborativa de prestadores que assegure cuidados de saúde centrados nas necessidades do cidadão. Da mesma forma, não é possível que a administração seja desempenhada por políticos, curiosos ou profissionais de saúde sem um conhecimento profundo dos métodos e dos instrumentos de gestão.
Tal como há mais de 35 anos, é necessário decidir pela capacitação da gestão intermédia e superior dos agrupamentos de centros de saúde, dos hospitais e das unidades locais de saúde. Não devem existir dúvidas de que a qualidade dos gestores e dirigentes depende da sua formação e dos conhecimentos, capacidades e competências que detêm.
A carreira de administração hospitalar merece ser reestruturada convertendo-se em carreira de administração e gestão em saúde, em que o acesso deve ser limitado a quem dispuser de formação especializada em administração e gestão de saúde e das competências necessárias.
Em primeiro lugar, é necessário assegurar a qualidade do programa de formação complementar em gestão em saúde composto por uma sólida componente teórica, mas também pelos conhecimentos e capacidades adquiridos através de estágios e trabalhos acompanhando a gestão diária das organizações. Sendo que o acesso ao programa de formação de gestão em saúde deverá permitir reconhecer capacidades, competências e experiência profissional e, necessariamente, adequar o programa à necessidade de formação complementar. A Escola Nacional de Saúde Pública tem a potencialidade para assegurar essas funções pela reestruturação do Curso de Especialização em Administração Hospitalar e por uma maior participação das organizações de saúde na preparação e funcionamento do curso.
Em segundo lugar, validada a formação necessária, tal como na carreira de administração hospitalar, é fundamental assegurar o acesso ao exercício tutelado da profissão durante um período mínimo necessário à aquisição de autonomia para a gestão da organização de saúde. Após este período deverá haver avaliação daquele exercício e ser desencadeado o acesso transparente e competitivo à carreira de gestão em saúde regulado através de instrumento legal adequado (e.g. contrato coletivo de trabalho).
Em terceiro lugar, o investimento num corpo dirigente com formação específica deve ser acompanhado por um programa de formação contínua e por avaliação do desempenho, sem as quais o exercício profissional deve ser limitado e a progressão na carreira impedida. Mesmo a mudança de áreas de gestão em saúde merecerá a exigência de frequência a programas certificados de formação.
Passados mais de três décadas da criação do SNS, no momento que se discute o Pacto para a Saúde, urge repensar o papel dos prestadores de cuidados e o seu modelo de gestão, nomeadamente ao nível da gestão intermédia e da gestão de topo. Os administradores hospitalares fazem parte da história do SNS e farão parte do seu futuro. No primeiro momento não hesitámos e dissemos presente à mais destacada construção da história da nossa Democracia. Fomos e somos o cimento que une as partes dos nossos hospitais aliando conhecimentos de saúde pública e de gestão. Nós, de pleno direito, não precisamos de pedir licença para continuarmos a aprender e a trabalhar contribuindo para um SNS com melhores resultados para os doentes e para a população.
Administrador Hospitalar e aluno de Doutoramento na Nova School of Business & Economics