Hábil, ma non troppo
A habilidade retórica não conseguiu ocultar o posicionamento político do Presidente.
Portugal esteve e continua a estar sujeito a um conjunto de constrangimentos que estão na raiz de alguns dos principais problemas e défices do país. A superação destes problemas e do lastro de destruição económica e social dos últimos anos exige a adopção de um conjunto de políticas que, sob vários prismas, chocam inapelavelmente com a ortodoxia neoliberal das instituições europeias e com o processo em curso de concentração de poder e de riqueza no seio da UE.
Tal quadro exige dos diversos órgãos de soberania uma firme acção institucional em defesa do interesse nacional (como a Constituição o consagra – o interesse do povo). Exige clareza e coragem política, nomeadamente na recusa de imposições, ingerências e chantagens, como as que marcaram o período pós-eleições legislativas, a discussão e aprovação do Orçamento de Estado, e as que agora se insinuam no quadro do Semestre Europeu e que ficaram bem patentes na recente deslocação a Portugal de Mario Draghi. No caso do Presidente da República, por maioria de razão, essa acção deve ser enquadrada pela Constituição da República Portuguesa e pelos princípios que esta consagra. Não outros.
A visita de Marcelo Rebelo de Sousa ao Parlamento Europeu coincide com um momento exigente da vida política nacional. Mas também do continente europeu. Os sinais de arrastamento e aprofundamento da crise económica e social; a sucessão de escândalos na área financeira envolvendo altos responsáveis políticos; o cortejo de atrocidades na vergonhosa gestão da crise dos refugiados; as tensões crescentes no seio do processo de integração – de que o “Brexit” é um elucidativo exemplo – convocam-nos para uma reflexão sobre o presente e o futuro da Europa e das relações entre os seus povos e Estados.
Perante a clareza e crueza da situação actual, a opção de tentar passar entre os pingos da chuva tem custos. O Presidente da República pagou-os no seu discurso. Um discurso hábil na gestão de contradições, mas que, apesar disso, não escondeu o essencial: o comprometimento e acordo com as políticas e constrangimentos associados à UE e à União Económica e Monetária. Políticas e constrangimentos que nortearam os PECs, o programa FMI-UE, esse autêntico pacto de agressão das troikas, e que agora norteiam os programas ditos de estabilidade e os programas nacionais de reformas.
Por entre a ambiguidade e a habilidade retóricas emergiu clara a intenção do discurso. O futuro o dirá, se da visita. O Presidente da República considerou que a UE “não faltou com sua ajuda a Portugal”, que o programa da troika “corrigiu desequilíbrios externos e internos”. Ressuscitou a “saída limpa”, adoptando a terminologia do Governo do PSD/CDS. No mínimo, uma injusta e injustificada absolvição das políticas da UE e uma desconsideração para com as centenas de milhar de portugueses atirados para o desemprego, para a pobreza ou para a emigração forçada, em resultado de quatro anos de destruição económica e retrocesso social.
A habilidade retórica não conseguiu ocultar o posicionamento político. Um posicionamento que, como o convite feito a Mario Draghi comprova, abre flancos (para não dizer que escancara portas) às manobras que de Bruxelas se desenvolvem para repor nos trilhos todas as políticas ditas de austeridade, de comprometimento das possibilidades de desenvolvimento do país, de esmagamento da soberania nacional e, por essa via, de desfiguração da democracia.
Nem a referência entusiástica a Durão Barroso faltou – o Presidente da Comissão Europeia num período em que foram impostas a Portugal algumas das mais gravosas chantagens.
Eis, em suma, a opção política de fundo afirmada numa visita sem resultados imediatos, cujos verdadeiros objectivos o futuro clarificará. Opção plasmada num discurso que, evidentemente, não mereceu nem o apoio nem o aplauso do PCP.
Deputado do PCP ao Parlamento Europeu