Meu nome é Machado, Lacerda Machado
Custa a perceber que o melhor homem do mundo para defender o interesse do Estado seja um gestor com este passado e este presente de associações à TAP e a Stanley Ho.
Bem se sabe que os agentes especiais têm de manter com as majestades a quem prestam serviços promessas de segredo e provas de confiança. Não causa por isso estranheza que António Costa tenha escolhido o seu “melhor amigo”, Diogo Lacerda Machado, para desempenhar missões espinhosas que exigem qualidades assim. Não causa também especial sobressalto que a sua contratação como agente de São Bento se tenha concretizado com uma simples troca de palavras, o bem mais precioso entre amigos que se prezam. Não, se há algo que deixa António Costa e Diogo Lacerda Machado mal na fotografia não é o “eh pá, dá lá ajuda a resolver este sarilho que tu és bom a negociar” mas o facto de o amigo do primeiro-ministro ser tudo menos uma pessoa com o distanciamento necessário para desatar o imbróglio da TAP. Porque ao desempenhar esse papel, Diogo Lacerda Machado vestiu a farda do agente público sem ter despido de forma clara e cristalina o uniforme que veste na defesa dos interesses privados que gravitam em torno da transportadora.
Vamos por partes. Diogo Lacerda Machado é há anos administrador em Portugal dos interesses do empresário macaense Stanley Ho. Foi nessa condição que participou no indizível (para ser brando) negócio da compra pela TAP da unidade de manutenção de aviões da Varig no Brasil, conhecida então como VEM. Convém sublinhar os detalhes do negócio: num primeiro movimento, 85% do capital da VEM ficou nas mãos da Geocapital, sociedade de Stanley Ho e do português Jorge Ferro Ribeiro, cabendo à TAP os restantes 15% do capital. Mas eis senão que, um ano depois, a Geocapital, ainda com Diogo Lacerda de Machado na administração, vende os seus 85% à TAP com um lucro de 20%, correspondentes a quase quatro milhões de euros. O negócio, que está a ser investigado pela Procuradoria-Geral da República, fez-se sem o sinal verde do Ministério das Finanças e a história que se segue é conhecida: a VEM, rebaptizada M&E Brasil, tornou-se um buraco sem fundo. Até hoje, terá devorado em prejuízos mais de 300 milhões de euros à transportadora.
Apontar o dedo a Diogo Lacerda Machado neste negócio faria sentido, se vivêssemos num mundo de almas cândidas, prontas a acreditar que os interesses do Estado são sempre legítimos e os interesses privados sempre conspícuos. Não vivemos, e o mínimo que se pode dizer é que o administrador fez o que melhor sabia, podia e devia para defender o dinheiro do seu accionista. E não fez pouco. A rapidez com que a Geocapital se desfez do negócio teve para Stanley Ho uma dupla vantagem: por um lado gerou uma mais valia de 20% em apenas num ano, o que é uma aplicação, no mínimo, jeitosa; por outro eximiu os seus accionistas de derreterem a cada ano que passou muitas dezenas de milhões de euros em prejuízos. Se a TAP foi o patinho sentado da história, condenado a acumular prejuízos da VEM, peçam contas ao seu CEO, não a Lacerda.
Um negociador desta estirpe é uma espécie de rei Midas que qualquer primeiro-ministro que se preze gosta de ter ao seu alcance. Sendo amigo, melhor ainda. O problema é que, ao que se sabe (e sabe-se o suficiente), Diogo Lacerda Machado continua mostrar na sua esfera de acção profissional zonas de atrito com o interesse público, em particular com o da TAP. A começar, ele continua a ser administrador dos interesses de Stanley Ho em Portugal o que, por princípio, não seria impedimento para que interviesse como agente especial do Governo nas negociações da TAP, se o seu capítulo de defensor de legítimos interesses privados na transportadora aérea estivesse em absoluto enterrado no passado da VEM. Ora, não é o caso. Como o PÚBLICO revelou, “Stanley Ho tem ligações ao grupo chinês que quer comprar a TAP”. Um pouco mais de prudência, ou de pudor, teria, por isso, desaconselhado a intervenção de Diogo Lacerda Machado no processo.
Vejamos porquê. Uma das novidades que saíram das negociações que fizeram reverter a maioria do capital da transportadora para a esfera do Estado é a entrada indirecta dos chineses da Hainan Airlines na TAP. Quer dizer, a Hainan ficou dona de uma fatia das acções da brasileira Azul e como a Azul tem uma fatia de acções na TAP, logo os chineses são, indirectamente, donos de uma parte da TAP. E o que é que isto tem a ver com Diogo Lacerda Machado? É que, em Hong Kong, o seu “patrão”, Stanley Ho, tem uma sociedade com a Hainan Airlines. Sem muito esforço, é possível colocar em cima da mesa uma relação de interesses, ainda que remotos, ainda que indiciários, ainda que pouco fluidos, entre o negócio da TAP e o empresário macaense. Ou seja, o Diogo Lacerda Machado que representava o Governo era o mesmo Diogo Lacerda Machado administrador de uma sociedade de um empresário macaense que partilha interesses económicos com uma empresa chinesa envolvida nessa mesma negociação com o Estado.
Dizer que esta relação é por si só justificativa de um ataque ao Governo por presumível alimentação de negócios suspeitos de falta de transparência pode ser um exagero. Mas já não é exagero nenhum afirmar que, face à importância e sensibilidade do negócio da TAP, Diogo Lacerda Machado não reunia condições para desempenhar o papel que desempenhou. Custa a perceber que o melhor homem do mundo para defender o interesse do Estado seja um gestor com este passado e este presente de associações à TAP e a Stanley Ho. Como escreveu no PÚBLICO Pedro Sousa Carvalho, “não haverá entre os 17 ministros, os 41 secretários de Estado, os não sei quantos assessores e adjuntos ou entre os 650 mil funcionários públicos alguém com competência para representar o Estado nessas negociações?”.
Há outras perguntas. António Costa sabia destas ligações à TAP e percebeu que ao autorizar a entrada dos chineses estava a desfiar uma remota ponta de ligação ao patrão do seu amigo? Porque não se fez um escrutínio prévio a esta nomeação? Alguém acredita que se uma escolha destas fosse feita pelo anterior Governo (ou o de Sócrates, ou outro qualquer antes dele) teríamos o Bloco e o PCP mudos e quedos como estão em relação ao passado e ao presente do agente especial do primeiro-ministro?
E é então aqui que encaixa a informalidade com que António Costa deixou correr o pano. Não estando Diogo Lacerda Machado completamente à margem de eventuais conflitos de interesses no negócio da TAP, ao menos que se submetesse desde o início a um qualquer tipo de vínculo contratual com a função pública. Ter negociado o processo da TAP na condição de franco-atirador do Governo que, ao mesmo tempo, mantinha um pé nos assuntos de Stanley Ho e um passado de bons negócios com a TAP, é, enfim, uma história digna de uma república das bananas. Depois da pressão generalizada (até do Bloco e do PCP), o Governo lá tratou de enquadrar as suas funções num contrato . Era bom que nos desse agora muitos e bons argumentos para ficarmos sem a mínima réstia de dúvidas de que Diogo Lacerda Machado agiu do princípio ao fim com o exclusivo empenho em defender o interesse nacional, e não em busca de um novo e putativo negócio da China.