O acto de escuta supõe um sentido, o ouvido ou a audição, mas não é apenas isso. É um gesto activo, que supõe uma predisposição e trabalho. “O prazer da escuta” é uma noção de reminiscências barthesianas. Roland Barthes escreveu sobre A Escuta, uma entrada na Enciclopédia Einaudi e ensaio retomado na colectânea O Óbvio e o Obtuso e texto que, com A Tempestade de Shakespeare, é fonte de um libreto, o que Italo Calvino escreveu para a ópera de Luciano Berio Un Re in ascolto. “A escuta está ligada (sob mil formas variadas, indirectas) a uma hermenêutica: escutar é pôr-se em postura de descodificar o que é obscuro, confuso ou mudo, para fazer aparecer na consciência o ‘abaixo’ do sentido (o que é vivido, postulado, intencionalizado como escondido)”. Ou “ao escutar um trecho de ‘música clássica, o auditor é chamado a “decifrar’ esse trecho, isto é, a reconhecer-lhe (pela sua cultura, aplicação, sensibilidade) a construção tão bem codificada (predeterminada) como a de um palácio numa certa época; mas ao ‘escutar’ uma composição (é preciso tomar a palavra no seu sentido etimológico) de Cage, é a cada som, um após outro, que escuto, não na sua extensão sintagmática, mas na sua significância bruta e como que vertical: ao desconstruir-se, a escuta exterioriza-se, obriga o sujeito a renunciar à sua ‘intimidade’”.
Na casa, na rua, nos transportes quase sempre ouvimos mas não escutamos. É um “ambiente”, uma música ou sons “de fundo”. Não há gesto, não há trabalho. Não que isso tenha que ser assim, como se os meios de reprodutibilidade técnica fizessem perder a “aura” de que falava Walter Benjamin. Mas é preciso concentração, trabalho, escuta activa, para termos aquilo a que aspiramos, à fruição, à hermenêutica, ao sentido que atribuímos à intencionalidade de um gesto musical.
Vai-se a concertos por hábitos sociais e rotinas, muito mais que por uma busca da escuta. Mas também há hábitos musicais, que geram uma acrescida expectativa de fruição. Na temporada da Gulbenkian há duas presenças que se repetem, a do pianista Grigory Sokolov (este também na Casa da Música) e da Orquestra Juvenil Gustav Mahler, e esta é sempre um renovado prazer. Não é uma orquestra instituída nos moldes habituais, porque cada ano os seus elementos são diferentes. Fundada por Claudio Abbado e destinando-se a jovens da Europa Central então politicamente separada pelos dois blocos, a formação alberga hoje jovens de todo o continente. Como é que uma orquestra ad hoc soa com tal coesão é miraculoso. Mas com ela convivem reputados maestros e solistas. Um dos maiores privilégios que tive foi a de a ouvir ainda dirigida por Abbado, com a vulcânica Martha Argerich solista no Concerto em sol de Ravel.
Depois de no ano passado, sob a direcção de Jonathan Nott, nos ter propiciado uma memorável Sinfonia nº2 de Mahler, voltou para dois concertos no passado fim de semana, com um maestro, David Afkham, de quem nos temos vindo a tornar cúmplices, assistindo ao seu amadurecimento, e um solista de excepção, o violinista Frank Peter Zimmermann. E apresentou-se com programas exemplarmente pedagógicos, com obras contemporâneas, as Métaboles de Dutilleux e Lontano de Ligeti, do século XX, os dois Concertos de Violino e a Música para Celesta, Percussão e Cordas de Bartók, e duas clássicas, as Sinfonias nº3 & 5 de Beethoven. A interpretação exaltante das Métaboles, o modo soberano como o solista “conduziu” o rapsódico Concerto nº1 de Bartók, e a leitura arrebatadora de uma e outra sinfonias de Beethoven (em que Afkham se mostrou atento aos contributos ao entendimento das obras de Harnoncourt e dos “historicistas”), eis momentos que proporcionaram, numa fruição exponencial, um raro prazer da escuta.