GPS, uma tecnologia a utilizar com juízo e moderação
Há pelo menos duas razões para não abusarmos do GPS do nosso carro ou smartphone. Uma vem das neurociências e a outra do perigo de embarcarmos numa viagem sem regresso devido à nossa excessiva confiança na fiabilidade desta tecnologia.
Já lhe aconteceu ligar o seu sistema de GPS para dar um passeio de carro, por exemplo nos arredores de Lisboa, e acabar por não fazer a mínima ideia de onde está, apesar de se encontrar a poucos quilómetros da cidade – e até de ver ao longe a estrada que leva à ponte sobre o Tejo? Ou que o seu GPS insista para virar à esquerda no próximo cruzamento, quando uma placa à beira da estrada indica que o destino que procura atingir fica para a direita? Ou ainda, dar com ruas que acabam em escadinhas, com o seu GPS a teimar que se trata de uma via transitável? Ou que, pelo contrário, o GPS não “veja” uma estrada que já existe há anos, que abre mesmo ali à frente e que parece ser o melhor caminho? Resumindo, já lhe aconteceu com certeza que o seu sistema de navegação pareça ter enlouquecido, deixando-o/a à beira de um ataque de nervos. A questão é que, muitas vezes, o mapa utilizado pelo GPS não está devidamente actualizado e vemos, no ecrã, o nosso veículo perdido no meio da paisagem.
Estes são exemplos – inócuos, embora irritantes – do que um sistema de posicionamento global (GPS na sigla em inglês) nos pode levar a fazer se confiarmos cegamente nele e não usarmos a nossa cabeça. Mas, ao longo dos anos, para além de episódios ridículos, também houve casos mortais – e uma série de incidentes que poderiam ter acabado muito mal.
“Morte por GPS”
Um dos exemplos mais trágicos – e que se sabe ter tido a ver com um sistema de GPS – aconteceu em Agosto de 2009 nos EUA. Mais precisamente, no Vale da Morte (mais conhecido como Death Valley), a norte do Deserto de Mojave, na Califórnia.
Alicia Sánchez e o filho Carlos, de seis anos, foram encontrados por uma guarda do parque. A mãe estava quase a morrer de desidratação (as temperaturas podem atingir os 50 graus naquele local durante o Verão), deitada e a delirar à sombra do seu carro todo-o-terreno. Quanto à criança, morrera há já algum tempo dentro do veículo.
“[Alícia] disse-me que tinha apanhado a estrada errada”, explicara a guarda, Amber Natrass, citada num artigo de 2011 no diário local The Sacramento Bee. “E que estava a seguir as indicações do seu GPS.”
“É um fenómeno que estou a começar a chamar ‘morte por GPS’”, declarava no mesmo artigo Charlie Callagan, na altura coordenador do Parque Natural de Death Valley. “As pessoas alugam carros com GPS, não fazem ideia de como funciona o sistema e estão dispostas a acreditar que o GPS os orientará no meio de nenhures.”
Desde então, os mapas utilizados pelo GPS naquela zona – que por vezes mostram estradas fechadas há décadas ou potencialmente perigosas, têm vindo a ser actualizados, mas não totalmente. A tarefa é hercúlea, dado que se trata de correcções a um grande nível de pormenor (e não apenas em Death Valley…).
Num registo menos fúnebre, o site da cadeia de TV norte-americana ABCNews relatava, em 2013, o caso de três turistas japoneses que ficaram encalhados na lama. O seu GPS indicava uma estrada entre a ilha que pretendiam atingir e o continente onde, na realidade, havia 15 quilómetros de água e lodos. Os turistas acabaram por ter de abandonar o carro quando a maré começou a subir. Não houve feridos nem vítimas, só um grande susto.
Segundo o mesmo site, em 2009, um casal sueco a caminho da ilha de Capri (ao largo de Nápoles), escrevera mal o destino no GPS e acabara em Carpi, uma cidade do Norte de Itália. “Capri é uma ilha, mas nem sequer acharam estranho o facto de não terem de atravessar uma ponte ou apanhar um barco”, insurgia-se um responsável do turismo italiano.
Ainda no registo do ridículo, em 2011, um camião cujo motorista seguiu as instruções do seu GPS acabou preso entre dois prédios numa ruela de Bruton (Reino Unido).
E em 2016, na Catalunha, turistas à procura de um restaurante seguiram em cinco veículos por uma estrada de terra por entre as vinhas. Quando perceberam o erro do GPS, conta a revista Decanter, deram meia volta e destruíram 200 videiras plantadas há décadas, com danos estimados em 8000 euros.
“As pessoas confiam de tal maneira no seu GPS que se esquecem de olhar pela janela para tomar decisões”, comentava Micah Alley, coordenador de buscas e resgates dos parques naturais dos EUA, no já citado diário californiano.
Mapas cerebrais
Ninguém duvida de que os aparelhos de GPS possam ser uma grande ajuda para nos orientarmos quando queremos chegar a um local onde nunca estivemos – uma quinta perdida no meio da serra ou uma ruazinha cujo nome ninguém reconhece. Utilizam os sinais enviados por uma rede de satélites em órbita terrestre para calcular as nossas coordenadas e daí a nossa posição nos mapas incluídos no software.
Mas, segundo um artigo publicado no final de Março na revista Nature por Roger McKinlay, consultor britânico de comunicação por satélite e navegação, o problema é que o GPS é mesmo, e sempre será, apenas isso: uma ajuda, um dispositivo a utilizar em conjunto com outros – tais como os bons velhos mapas de estradas e, em casos extremos, uma bússola. Aliás, McKinlay sugere que a aprendizagem da leitura de mapas passe a fazer parte do currículo escolar.
Este especialista considera que o facto de haver cada vez mais gente a usar sempre o GPS para se deslocar é preocupante. Segundo ele, a ideia de que, um dia, automóveis sem condutores nos levarão a todo o lado em segurança e sem precisarmos de fazer qualquer esforço mental de navegação é um logro. Orientar-se e “navegar” na paisagem que nos rodeia é uma tarefa complexa que não pode ser totalmente confiada às máquinas.
De facto, nós próprios possuímos, à nascença, o melhor de todos os sistemas de navegação: o nosso próprio cérebro. “Quando se trata de escolher um caminho, os humanos são mais espertos do que as máquinas”, diz McKinlay.
“A memória espacial humana é notável”, acrescenta. “Na Grécia antiga, os oradores visualizavam os seus discursos sob a forma de uma casa, colocando cada tema que iam abordar numa divisão e recuperando-os ao percorrer um trajecto imaginário dentro da casa. As pessoas que têm uma memória fora do vulgar ainda o fazem.”
Como funciona o nosso “GPS” inato? Em 1971, John O’Keefe, do University College de Londres, descobriu, no rato, que certas células numa estrutura do cérebro chamada hipocampo se activavam quando o animal se encontrava num dado ponto de uma sala e outras quando se encontrava noutros pontos. O hipocampo desempenha um papel particularmente importante na consolidação da memória.
O’Keefe especulou então que essas células formavam um “mapa” cerebral interno do mundo exterior e baptizou-as “células de posicionamento” (place cells). Tinha de facto descoberto o primeiro componente de um GPS cerebral.
Mais de 30 anos depois, em 2005, May-Britt e Edvard Moser, da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia de Trondheim, revelavam na revista Nature que, também no rato, certas células de uma outra estrutura – o córtex entorinal –, também activadas na navegação espacial, formavam uma grelha hexagonal, semelhante a um favo de mel. Os Moser, que as baptizaram de “células em grelha” (grid cells), mostraram que eram nem mais nem menos do que um sistema mental de coordenadas espaciais. Sabe-se hoje que algo de semelhante também existe nos seres humanos. O’Keefe e os Moser partilharam o Nobel da Medicina em 2014 por estas descobertas.
Estes dois componentes do GPS cerebral, que funcionam a um nível sobretudo subconsciente, interagem entre si – e também com “células de direcção” (head direction cells, situadas numa estrutura entre o hipocampo e o córtex entorinal e descobertas nos anos 1980), que informam sobre a direcção em que aponta a cabeça. Resultado: quando, por cima da “grelha” celular do córtex entorinal, se vêm sobrepor os padrões de actividade dos outros dois tipos de células, isso permite ao animal saber onde estão os marcos de referência relevantes à sua volta, navegar entre eles e lembrar-se deles para futura utilização.
Usa-se ou perde-se
“Porém, a navegação é uma competência que ou se usa ou se perde”, escreve ainda McKinlay no seu comentário na Nature.
De facto, há uns 15 anos que os neurocientistas suspeitam que os nossos dotes inatos de orientação só se mantêm bem “oleados” se os utilizarmos assiduamente – caso contrário, começam a definhar. E há cada vez mais resultados científicos que reforçam esta ideia.
O primeiro estudo a sugeri-la foi feito em 2000 pela equipa da britânica Eleanor Maguire, hoje no University College de Londres, e publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences. Mostrava que os taxistas de Londres, habituados a percorrer os milhares de ruas daquela cidade e grandes conhecedores da sua complexa geografia, tinham mais matéria cinzenta na parte posterior do hipocampo do que o resto da população.
Ao longo dos anos, outros estudos confirmaram estes resultados. E em 2015, Tim Keller e Marcel Just, da Universidade Carnegie-Mellon (EUA) anunciavam na revista NeuroImage que é mesmo o facto de ter de integrar e memorizar informação espacial que provoca – e bastante depressa – mudanças no hipocampo. Ou seja, não é, como também se poderia pensar, o facto de possuir à partida mais matéria cinzenta no hipocampo que faz os bons taxistas…
Entretanto, outros estudos confirmaram que o desempenho, em termos de navegação espacial, de pessoas que usam apenas uma lista de instruções (do tipo “virar a esquerda a 50 metros, seguir em frente e na rotunda virar a direita…”) para se deslocarem é bastante pior do que o daquelas a quem foi dado um mapa convencional para se orientarem. Em particular, quando eram inquiridas sobre o que tinham visto ao longo do percurso e lhes era pedido para desenhar a rota percorrida, parte das que tinham utilizado instruções de tipo GPS nem tinham registado ter passado duas vezes pelos mesmos locais, vindas de direcções diferentes.
“Ao contrário de um mapa da cidade, o GPS só fornece um mínimo de informação, sem o contexto espacial da área envolvente”, escrevia em 2012 Julia Frankenstein, psicóloga da Universidade de Freiburg (Alemanha) no The New York Times. “Vemos o caminho de A até B, mas não vemos os marcos [uma bomba de gasolina, uma igreja, um supermercado] que surgem ao longo do caminho. Desenvolver um mapa cognitivo [cerebral] a partir de tão escassa informação é como tentar recuperar uma peça musical com base nalgumas notas de música.”
“Os nossos cérebros evitam guardar informação desnecessária”, prosseguia a cientista. “É aí que poderá residir a nossa atracção inconsciente pelo GPS, mas também significa que não estamos a fazer trabalhar o cérebro.”
Ao mesmo tempo, é inegável que o GPS é uma fantástica ferramenta. Mas então, o que fazer? A resposta parece ser: usá-lo com juízo e parcimónia. Não o ligar a menos que não façamos a mínima ideia da localização do nosso destino ou que estejamos mesmo perdidos.
Há quem vá mesmo mais longe e abandone totalmente o uso do GPS. Foi o caso, por exemplo, da neurocientista Véronique Bohbot, da Universidade McGill (Canadá). Entrevistada em 2013 pelo diário The Boston Globe, explicava que o processo de geração de mapas mentais também é importante para actividades que nada têm a ver com irmos de casa para o trabalho. Segundo ela, deixar que essa capacidade se atrofie pode ser mau para nós. “É importante que as pessoas cuidem da sua saúde – incluindo a cognitiva”, recomendava. Apesar de não haver qualquer indício científico que sugira que o uso do GPS provoca um declínio cognitivo, na dúvida Bohbot decidiu abster-se.
O filósofo e urbanista francês Paul Virilio, que pensa que qualquer tecnologia contém em si própria um potencial de acidentes, declarou numa recolha de conversas publicada em livro em 1998: “Não há ganho sem perda. Quando inventamos o elevador, perdemos as escadas. Claro que as escadas continuarão a existir, mas tornam-se uma saída de emergência.” E nós perguntamos: valerá a pena ganhar o GPS para transformar o nosso cérebro numa escada de emergência enferrujada?