Cerco a Angola
Sem dúvida que lamento os grilhões que a máquina judicial impôs aos moços ora condenados. O certo, porém, é que a condição deles está a ser instrumentalizada.
"Não creio no código sagrado das praças e dos fóruns; não é um código que eu respeite e sequer lhe outorgo muito crédito"
Carta de Bruno Shultz a Witold Gombrowicz, Julho de 1938
Tenho acompanhado com alguma preocupação as movimentações multitudinárias que se sucedem em Lisboa e noutras cidades portuguesas a exigir a libertação dos jovens recém-sentenciados em Luanda. Se o fenómeno em si encerra algo de singular, pois de repente centenas ou milhares de pessoas se puseram em marcha e se interessaram por Angola e pelos direitos humanos supostamente ali espezinhados pelo regime do MPLA, mais curioso ainda é observar o reverso desta medalha. O que nos mostra ela? A montagem espectacular preparada pelos meios de comunicação massivos com as suas reportagens, noticiários e entrevistas abundantemente servidos por elevadas quotas de emoção. É como se de repente se abrisse um vulcão. Falar de Angola virou assunto de primeira importância, quase diria caseiro, como se Angola, um Estado livre e independente, fosse um monopólio da antiga Metrópole colonizadora. De um dia para o outro a sociedade portuguesa viu (e continua a ver) desfilar nos ecrãs das televisões e nas páginas dos jornais gente empavonada, de uma vaidade pueril e pseudo-sapiencial a debitar todo o tipo de frivolidades acerca daquele país africano. A filáucia é tanta que cada qual procura ser mais sentinela da liberdade que os demais. As suas quixotadas soam infalíveis, como já dizia um articulista brasileiro em 1823, que a si próprio se apelidava de “inimigo dos intrigantes” e não poupava o “diabólico frenesim” dos inimigos do Brasil em Portugal. Estes assemelham-se ao herói da Mancha, de Cervantes, homem de inegáveis recursos intelectuais que discorria com muito acerto sobre todas as matérias. Porém, quando se tratava de cavalaria andante, a sua mania, “perdia o siso”.
Acredito que a maioria esmagadora das pessoas que se associou aos rituais de protesto e de vigília em praça pública levasse no coração o selo da solidariedade desinteressada. Não direi o mesmo de determinados partidos políticos ou de todo um arsenal de activistas e de organizações não-governamentais (ONG) supostamente comprometidos com a defesa dos direitos humanos. Os desígnios de cada um deles, a meu ver, não são nada claros. Outro tanto ocorreu no Brasil, embora a uma escala bem menor. Alguns políticos alçaram a voz no Congresso a bradar contra as injustiças do regime de Luanda, só que o partido que protagonizou esta queixa se esqueceu de um detalhe: em 2013 desapareceu um cidadão sequestrado pela polícia militar no decorrer dos levantamentos populares que sacudiram o país de uma ponta a outra. Até hoje ignora-se o paradeiro de tal indivíduo, no entanto, que eu saiba, nenhum ilustre deputado ou senador em Brasília subiu à tribuna a denunciar este facto trágico, o qual enfileira com milhares de outros exemplos igualmente nefastos, sem que as cabeças coroadas nos altos patamares do poder de Estado emitam o menor sinal de perturbação.
Assim sendo, por que razão Angola e o seu regime político são trazidos agora – justamente agora, faz uns meses – para o centro deste grande furacão de arrebatamento e exacerbação colectiva? Não há precedentes em Portugal, mesmo quando se sabe de graves violações cometidas por órgãos do Estado angolano incumbidos de zelar pela aplicação da justiça, como aconteceu vai para dois anos com dois mancebos, negros e pobres, que perderam a vida barbaramente trucidados às mãos de agentes das forças de segurança. Qual foi a reacção da sociedade lusitana? Nenhuma. Porquê agora toda esta fermentação e alarido? Porquê toda esta panóplia de sarcasmos paternalistas? “Não aceitamos chantagens de Luanda”, “é preciso isolar o regime de José Eduardo dos Santos”, eis o tipo de aranzel que escorre das páginas dos jornais. O que está por trás de toda esta coreografia? É o que irei tentar explicar.
Este fenómeno de turbulência e excitação de ânimos não sucede por acaso. Aparentemente está ligado à defesa dos direitos humanos ou a uma luta da razão contra a prepotência, todavia nos seus recôncavos escondem-se segredos altamente sensíveis que cada um dos actores-chave desta campanha se esforça por não revelar e que são muito mais do que as pessoas imaginam. Dito com clareza: nenhuma destas encenações tem que ver tão-só com a prisão, greves de fome e condenação de uns tantos rapazes ou com o facto de um dos enclausurados ter a nacionalidade portuguesa. Quantos cidadãos portugueses penaram nos calabouços de Angola? Quantos foram executados no reatar da guerra civil em 1992? Quantos foram torturados no decorrer dos trágicos acontecimentos de 27 de Maio de 1977 sob a ditadura de Agostinho Neto? A lista é enorme, mas nem por isso alguma vez se assistiu em Portugal a tamanho clima de paixões e encarniçamento. Em alguns casos até se chegou ao ponto de uma certa imprensa estrangeira, com o Nouvel Observateur à cabeça, de feição mitterrandista, se dar ao luxo de insultar as vítimas de África (entre as quais um capitão de Abril e ex-membro do Conselho da Revolução) e o país sequer reagir indignado no seu patriótico pundonor. No ápice do extermínio de 1977, apenas uma voz estrondeou nas galerias do Parlamento a desancar no silêncio cínico dos seus pares: a poetisa e, então, deputada independente Natália Correia. Contudo, a sua voz perdeu-se abafada pelas pedras frias daquele santuário das leis. Até as chancelarias do Norte Global se calaram desvalorizando o significado da tragédia. As vítimas, no seu conceito, não passavam de comunistas concertados com Moscovo.
Sem dúvida que lamento os grilhões que a máquina judicial impôs aos moços ora condenados (são todos angolanos, sem excepção, diga o que se disser). O certo, porém, é que a condição deles, de inferioridade na sua cidadania, está a ser muito bem instrumentalizada por determinados grupos encobertos por um sistema de demagogia e por um plano secreto, os quais se servem das artes do ilusionismo mental para, com melífluas palavras sobre as virtudes da democracia, atingirem Angola na sua integridade e independência. Como lembra um especialista espanhol em temas de ética e lideranças sociais, “a principal tarefa dos manipuladores consiste em ocultar a violência sob o véu sedutor do fomento das liberdades”.
Um esclarecimento sucinto antes de continuar. Estou à vontade para escrever o que se vai ler neste texto, a minha autonomia intelectual e política em relação ao regime de Luanda é absoluta; sempre o foi, da mesma forma que o é em relação a qualquer plataforma partidária ou em relação a qualquer ideologia ou crença. Não tenho amos de espécie alguma nem vínculos com ninguém, salvo comigo mesmo e com a minha escrita. Sou, em suma, um homem com um destino próprio. Quem lê os meus livros e os artigos que estampo na imprensa portuguesa conhece-me e pode corroborar o que digo.
Pois bem, tomando como pretexto a Justiça e a razão, é notório estarem a forjar-se ferros para atingir o Poder político angolano no seu âmago, motivo pelo qual se pôs em marcha uma campanha geopolítica encoberta de vastíssimas proporções. Nas prisões do Estado sionista de Israel, por exemplo, os presos palestinos são tratados de forma cruel e reduzidos à sede e à fome como forma de castigo, mas jamais o Departamento de Estado norte-americano se empenhou alguma vez em hastear a bandeira dos direitos humanos e em censurar o governo de Telavive. Junte-se a isto a sequência ininterrupta de brutalidades à volta do mundo, em Estados amigos como a Arábia Saudita, Qatar, Turquia e outros (no primeiro destes países as pessoas condenadas são decapitadas e logo a seguir crucificadas), mesmo assim os arautos da Justiça parecem totalmente distraídos. Por contraste, Angola é, por assim dizer, fustigada diariamente com advertências de toda a ordem (tudo começou com o julgamento de Rafael Marques há dois anos no processo que lhe foi movido por generais angolanos). De então para cá, o vendaval de acusações é incessante. Alinhados com o Departamento de Estado nesta pérfida campanha perfilam-se professores de várias Universidades dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, a avaliar pelo número de “protestos” emitidos por estas tribos académicas; e também a famosa organização estadunidense Human Rights Watch (HWR), do megaespeculador global George Soros, que se beneficia de fundos doados por várias fundações, as quais por sua vez são financiadas por grandes corporações norte-americanas, de entre as quais avulta a Council of Foreign Relations (CFR), sedeada em Nova York. O Conselho Directivo da HRW é dominado pelos homens mais ricos do país, isto é, pela elite empresarial norte-americana, por banqueiros e donos de meios de comunicação, e ainda por figuras de topo da política americana. De acordo com informações idóneas, as contribuições para a HRW estão dependentes de serviços ou de “projectos específicos” que ela presta aos seus patrocinadores multimilionários; a organização, por outro lado, está ligada aos serviços secretos norte-americanos e em estreita comunhão de negócios com fundações pró-israelitas.
Poder-se-iam citar outras organizações não-governamentais, igualmente ambíguas nos seus procedimentos e que se sabe entreterem relações promíscuas com governos do centro mundial e com corporações transnacionais, e que agora se revelam bastante activas na desestabilização de Angola. Nelas estão infiltrados académicos, estudantes de classe média alta, escritores, políticos e activistas. O espaço disponível para este artigo lamentavelmente não me permite tanta largueza de considerações. Em todo o caso, farei o possível por tornar claros os móbeis que, no âmbito dos “projectos específicos” da HRW e de outras organizações, orientam a estratégia de desgate e desestabilização do poder de Estado do MPLA. É fácil perceber. Desde que se integrou no eixo de cooperação geopolítica e financeira com a República Popular da China e com a Rússia, Angola conseguiu preservar políticas pautadas por um nacionalismo independente e evitar o colapso resultante de medidas privatistas e dizimadoras do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial; acima de tudo, conseguiu evitar ingerências nos planos de administração das suas reservas petrolíferas e, como consequência, o seu regime político passou a estar na mira dos promotores da subversão internacional. Mesmo sabendo-se que Angola, pela sua história recente de Independência nacional, não se integra na tradição dos “valores ancestrais do liberalismo europeu ou norte-americano” e que, portanto, os direitos humanos não funcionam ali à mesma escala e qualidade das democracias do Primeiro Mundo, tal facto em absoluto não interessa a quem está habituado a derrubar governos. A prioridade estratégica das multinacionais, dos grandes bancos e dos governos centrais é o saque das riquezas do gigante africano. Foi isto que ocorreu com o governo de Muammar al-Gaddafi, na Líbia, onde a invasão militar foi precedida por uma guerra geofinanceira e propagandística arquitectada por George Soros, pelo banco Goldman Sachs e por banqueiros a soldo de Rothschild, os quais em comum ajudaram a reforçar a hegemonia de Israel no Médio Oriente.
Resumindo, para tais blocos de poder só conta uma coisa: remover o MPLA das estruturas centrais do aparelho de Estado e, no seu lugar, entronizar um parceiro dócil e politicamente obediente que abra as portas do país à desregulamentação de todos os sectores da economia e aos movimentos do capital financeiro. Não se perdoa ao governo de José Eduardo dos Santos a estreita ligação de Angola à China e à Rússia. À luz dos superiores interesses geoestratégicos dos Estados Unidos esta ligação é contra natura. Há que rompê-la, mesmo que pela força das armas. Para isso, em princípio, nada mais eficaz em termos de propaganda do que o uso de organizações não-governamentais como cavalos de Tróia com as suas campanhas demolidoras a acusar Angola de violação dos direitos humanos, e com as suas propostas de ruptura política. Não foi Henry Kissinger que declarou que no tempo da guerra do Vietnam se houvesse ONG ter-se-ia evitado o conflito bélico? Na sua perspectiva, as organizações não-governamentais teriam ajudado a colocar uma lápide no regime de Ho Chi Min.
Termino chamando a atenção para os perigos iminentes que estas forças e organizações internacionais estão a criar na região da África Austral com os seus pregões desestabilizadores ao porem em causa equilíbrios existentes que, embora frágeis, são fruto de um longo caminho de superação ainda amortalhado por muitos traumas nascidos de guerras civis. Angola é um bom exemplo. Apesar do conflito de larga duração que assolou o país desde 1961, hoje em dia não é abalado por acções terroristas como habitualmente acontece noutras geografias de África e do Médio Oriente.
A despeito, por outro lado, das clivagens tribais vividas durante a luta de libertação nacional (a que nenhum actor do independentismo ficou imune), Angola na actualidade não se confronta com situações de instabilidade ou divisões étnicas e religiosas que obriguem os aparelhos repressivos do Estado a intervir com uma dureza inabitual. Quando muito, poderão ocorrer aqui e ali alguns fermentos de violência, se bem que tenham todos um carácter episódico, com um baixíssimo grau de intensidade, quase diria irrelevante, não sendo por isso fenómenos persistentes, enraizados no corpo social. A acomodação das várias etnias e tribos com vista a um ordenamento social equilibrado tem decorrido de forma relativamente pacífica. Não se registam conflitos de grande impacto e, nesta medida, não me parece excessivo afirmar que os factores de conflitualidade, a existirem, são menos de natureza sistémica do que de natureza política e até social, próprios de uma sociedade ainda mal saída dos labirintos da colonização, onde está tudo por fazer, mas por sinal bem diferente do que acontece, por exemplo, na Nigéria, onde o problema das diferenças regionais e étnicas se faz sentir de forma bastante aguda, dando lugar ciclicamente a explosões sociais que abalam todo o edifício do Estado.
Por último, importa referir que não se assistem em Angola a conflitos dramáticos com raiz em vinganças perpetradas por pessoas pró-MPLA que perderam familiares às mãos dos bandos militares da UNITA no transcurso da guerra civil, e vice-versa. Nem nos povoados mais longínquos se tem conhecimento da disseminação de uma cultura de violência em que cidadãos de diferentes extracções partidárias se agridem entre si, como pretendem alguns arautos do cataclismo e dos direitos humanos, que afirmam que Angola se acha no limiar de um vulcão social e que se impõe introduzir mecanismos de ruptura política para impedir a queda no abismo.
A liberdade ainda é muito controlada, reconheço, mas como dizia um cidadão de Genebra aos polacos na 1.ª metade do século XIX sem virtudes ela “[...] degenera em desregramento moral e, cedo ou tarde, em anarquia, pior que o despotismo”. Falar de liberdade em África pelo microscópio das sociedades do Norte plenamente desenvolvidas, é um erro descomunal, é uma visão ancorada em conceitos paternalistas. Quanto à reconciliação nacional, com certeza ela ainda está longe dos marcos apetecidos pela totalidade da cidadania, a sua definição e prática oficial estabeleceram-se e vigoram nos limites preceituados pela paz militar instaurada em 2002 pelo grupo armado vencedor. É preciso avançar mais, desobstruir tabus e soberbas partidárias para em clima de paz se conseguir sarar feridas e demónios do passado. Resultará difícil, sem dúvida. Será um processo muito lento, mesmo assim, no meio de tantas expectativas sociais que contrastam com as omissões do poder político, ninguém ou nenhum grupo social tem caído em vertigens de exprimir pautas reivindicativas por meio de gestos de violência. O ciclo de violência que sustentava a guerra civil foi sustado e é a partir deste equilíbrio fundamental, ainda que precário, que se impõe estabelecer prioridades e consensos entre todos os actores políticos e sociais de modo a avançar-se para uma nova fase da história nacional.
Historiador angolano