PJ Harvey à procura de sentir a guerra

PJ Harvey partiu para sentir os lugares e as pessoas, para ser transformada, por crer que o mundo ainda deve afectar e implicar. The Hope Six Demolition Project parece passar esse testemunho: a partir daqui, cada um que faça o seu trabalho de se deixar contaminar pelo mundo.

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Seamus Murphy

Há que ler os sinais onde eles se deixam apanhar. Naquelas que ficarão, seguramente, como as fotografias de PJ Harvey associadas de forma mais instantânea a The Hope Six Demolition Project, a cantora-compositora aparece de mãos grudadas num saxofone. Não é mero adereço, nem tão-pouco indicativo de que PJ seguiu o mesmo caminho do derradeiro álbum de David Bowie, rodeando-se de um quarteto de jazz. Mas é verdade que o saxofone de Mike Smith (colaborador habitual de Damon Albarn) anda por todo o lado em Hope Six e define, em boa parte, a sonoridade do nono álbum de estúdio de Harvey. E tanto encontramos o saxofone de Smith emaranhado nas guitarras de The Wheel, numa versão mais minimalista; como o ouvimos a ocupar com imponência Chain of Keys como se fosse Dana Colley a comandar uma canção dos Morphine; como o encontramos num exemplo extremo de desprendimento ao acentuar a progressiva dissonância de The Ministry of Social Affairs, num desenfreado solo free.

Não é um saxofone como poderia ser outro instrumento a assumir esse papel nuclear em Hope Six. Construindo um álbum que continua a sua investigação sobre a guerra e os seus palcos, PJ Harvey traça uma linha directa entre o anterior Let England Shake (2011) e o novo álbum. Mas enquanto Let England Shake nascia de algum distanciamento, baseava-se na leitura de cartas, diários e documentos relativos à I Guerra Mundial e era um brilhante disco duro, seco, cru, devastado, do qual se saía com a sensação de ter de cuspir terra da boca, que ali se enfiara na visita com PJ às trincheiras, Hope Six é definido por uma urgência ligada a acontecimentos presentes e memórias vivas, resultando por isso num extraordinário disco que responde sem distância, implicado.

Pouco depois de Let England Shake ser lançado, aliás, possivelmente insatisfeita com o papel de “correspondente de guerra” que assumiu para si nesse disco, PJ Harvey começou a preparar viagens na companhia do fotojornalista Seamus Murphy, experiente em cenários de guerra, e que a cantora percebeu ser a sua companhia para o projecto que pretendia empreender após visitar a exposição A Darkness Visible, um conjunto de fotos de Murphy que documentavam as suas passagens regulares pelo Afeganistão. Em conjunto, embarcaram até ao Afeganistão, ao Kosovo e a Washington D.C., e daí nasceu o livro de poemas e fotografia The Hollow of the Hand, assim como Hope Six (cujo título remete para um programa governamental norte-americano de revitalização urbana) nasce agora de impressões e imagens a quente dessas viagens em que Harvey partia com a intenção de sentir os efeitos da guerra na pele e não chegar até eles mediada por escritos e impressões alheias.

O tom, no entanto, desde logo identificado no primeiro tema divulgado, “Community of Hope”, é precisamente o da vitalidade (mais ou menos perturbada) que grassa sobre a catástrofe. PJ Harvey não partiu à procura de criar um álbum miserabilista e infectado por todos os males do mundo ou desalentado pela recolha de provas de crueldade humana, mas antes dá corpo a 11 canções em que se sente o sangue que anima a resistência e a sobrevivência, e não o sangue derramado nas incontáveis mortes. “Community of Hope”, talvez o tema menos inesperado da fornada, picando o ponto na sua habitual filiação na música da sua heroína Patti Smith, centra logo a questão musical nessa sobrevivência.

Levanta também o véu sobre uma carga blues/gospel que, colhida em Washington D.C., se manifesta de forma magnífica em River Anacostia (a roçar-se nos blues bastardos de Nick Cave, enquanto a voz chega a aproximar-se do tom mais operático da sua seguidora Anna Calvi), Near the Memorials to Vietnam and Lincoln ou The Ministry of Social Affairs (que arranca com um sample de blues clássico, That’s What They Want, de Jerry McCain & His Upstarts, tornando-se cada vez mais indomado).

Sem cair na armadilha de forçar a entrada de música afegã ou kosovar (há gravações de monges do mosteiro de Peja, Kosovo, sem que isso seja um acontecimento) nas suas canções, Hope Six acumula sobretudo as imagens de Anascostia, localidade de face terceiro-mundista (na descrição de Murphy à revista Uncut) mesmo ao virar da esquina de Washington, da guardiã de Bogushevci sobre a qual canta em Chain of Keys (“a woman keeps her hands behind her back / imagine what her eyes have seen”), do rosto da criança que vê do outro lado do vidro numa viagem de carro pelo Afeganistão e que fica para trás a gritar “dólar, dólar” no tema baptizado precisamente Dollar, Dollar.

E depois há a doçura swingada de A Line in the Sand, conduzida por uma percussão agitada, e a espantosa Ministry of Defence, rude, de uma toada de natureza marcial e até meso industrial, e um saxofone que soa quase doente, tornando talvez mais explícito tudo aquilo que Hope Six, sem qualquer desejo de manifesto político, parece conter no seu interior: ser afectado/a pelo mundo, ir à procura de furar o estado anestesiado perante tudo o que acontece no planeta e chega a cada sofá filtrado por uma câmara de televisão, sem cheiro nauseabundo, sem pó a invadir as narinas e a encher os pulmões, sem poder beliscar um centímetro de uma pele segura e protegida. PJ Harvey partiu para sentir os lugares e as pessoas, para ser transformada, por crer que o mundo ainda deve afectar e implicar. The Hope Six Demolition Project parece passar esse testemunho, interrompendo apenas num breve par de momentos o espanto musical que oferece. A partir daqui, cada um que faça o seu trabalho de se deixar contaminar pelo mundo. Procurando consequências.

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