Pequena história de como esta semana o mais antigo alfarrabista fechou portas

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1. Enquanto os offshores do Panamá batiam o recorde de buscas no Google, os bancos suíços torciam para ninguém reparar que a Suíça existe, e João Soares ainda não tinha cometido harakiri, um alfarrabista aberto em Lisboa desde 1876 fechou portas. Aconteceu na segunda-feira, 4 de Abril. Soube porque me mudei para o bairro há um ano, e aquelas estantes tinham afinidades com o que me ocupava. De modo que fui passando, até esta semana comprar os últimos livros lá. Era o mais antigo alfarrabista do país.

2. Não sei o nome do bairro. Nem Santa Catarina, nem São Bento, algo entre os dois. Em geral, digo Poço dos Negros, mais rua, menos rua. Quando primeiro conheci a zona, há décadas, comia-se na Pastelaria Nita, no Cantinho da Paz, no Zapata, além de se dançar no Incógnito, para dar exemplos do que se mantém, entre o que foi e veio. Neste meu breve tempo de moradora, a cada mês deve ter inaugurado algo, além das obras, dos andaimes, das casas para airbnb e para vender, appartements-boutique, five stars properties, fotografadas do 28 sempre atulhado, por enquanto ainda alheio à cabidela de sexta-feira.

3. Foi na rua Poço dos Negros que uma família originária de Abrantes inaugurou a Livraria Avellar Machado há 140 anos. Nome, espólio, morada nunca mudaram, só a família. A Avellar comprou e vendeu livros, revistas, gravuras, posters, e na primeira metade da sua história chegou a publicar, sobretudo edições escolares, de Frei Luís de Sousa a tabuadas de matemática. Aqui começou, como empregado, Augusto Sá da Costa, antes de sair, já gerente, para fundar a sua livraria-editora no Poço Novo. Era assim que se chamava o largo pouco à frente, confluência da Poço dos Negros e da Poiais de São Bento com a Calçada do Combro. Hoje chama-se largo António de Sousa de Macedo, nome de um político literato do século XVII. Morou onde agora está um daqueles projectos de apartamentos, lindamente recuperado pelo arquitecto Manuel Aires Mateus. Ao mudar para o bairro, entrei numa relação com essa obra, visto ela dominar as ideias, em termos sónicos. E foi talvez impelida por uma britadeira que certo dia me refugiei na Avellar Machado. A derradeira anfitriã estava sentada à direita de quem entra. Saí de lá levando quinze livros. Fácil contá-los, por serem uma colecção.

4. Outros houve. Mas o auge foi num recente fim de tarde, ainda Inverno. Lendo em casa, fiquei a saber de um pequeno catálogo, esquecido, remoto. Escrevi o título no Google, na esperança de um excerto, e apareceu-me referido no espólio da Avellar Machado. Confirmei por telefone, incrédula, Elisa Figueiredo foi verificar. Sim, senhora, tinha o catálogo, e como novo. Atravessei dois quarteirões de Inverno, já escurecia. Lá estava ele, relevo de tipografa no papel, nunca antes folheado. Elisa disse que com o desconto eram 11 euros. A única existência que me aparecia na Net, ali à porta de casa.

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Avellar Machado

5. Foi quando soube do que ia acontecer à livraria. Elisa estava rodeada de caixas, contou-me que iam mudar. A renda não era muito alta, menos de 300 euros, e terminando só daqui a mais de um ano. A questão é que o senhorio tinha planos futuros, de acordo com os turistas, entretanto não lhe convinham obras, a Avellar chegara a pensar fazê-las, mas agora seriam tais que não era comportável, o espaço estava muito degradado, os livros a estragarem-se, a venda online caíra com a crise, e os turistas não compravam velharias em português, “quando muito um poster, sendo barato”. A história da casa chegara a um beco.

6. Orlando Figueiredo, pai de Elisa, começou por ser um jovem paquete da Bertrand do Chiado, nos anos 1940. Vivia na Amadora, vinha de comboio, autodidacta compulsivo. Já gerente, ficou desempregado na convulsão do PREC. Quem lhe deu a mão foi um ex-colega, António Marques André, que fora trabalhar para o Brasil. André propôs a Orlando uma parceria: voltando a Portugal, os dois tomariam conta da Avellar Machado, onde o gerente ficara idoso. Assim foi, ordenaram os milhares de livros empilhados, organizaram estantes por secções, forraram as paredes com esferovite para isolar a humidade. E quando tudo entrou em velocidade cruzeiro, André saiu para fundar a Lácio, no Campo Grande, onde ficou até morrer, em 2014. “O meu pai acha que ele só esteve aqui para o ajudar”, disse Elisa, quando agora a visitei.

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Avellar Machado

7. Estantes inteiras já tinham entretanto ido para Massamá, onde a família mora. Elisa mostra-me as placas de esferovite, velhas de 40 anos, com a parede a desfazer-se por trás. Basta encostar a mão, caem pedaços, areia. Quando ela tirou as estantes, saíram “centopeias, até ratinhos”. A banda desenhada que ali estava, “de coleccionismo”, foi para o lixo, tal a infiltração. Uns mil euros de prejuízo, calcula Elisa, enquanto eu tomo notas ao lado de uma revista Civilização de Maio de 1926. No armazém há azulejos oitocentistas, pilhas de revistas francesas dos anos 1930, do Ultramar português. O canto mais propenso a furtos é onde continuam a Física, a Química, a Astronomia. Elisa afasta os volumes e mostra a areia em cada prateleira. A parede está sempre a cair, não adianta muito aspirar. Um clássico da Avellar era os clientes dizerem que lhes entrava areia para os olhos.

8. Quanto mais perto do livreiro, menos propenso a furto. As primeiras edições, por exemplo, de Mário Cesariny, Luiz Pacheco, estavam atrás do balcão. Elisa lembra-se de “umas folhas A4 com desenhos e textos”, que os dois andavam a congeminar. Pacheco vinha muito “vender livros para ter o que comer”. E fresco como era ainda chamou ao livreiro “troca-tintas” numa cartinha. Ecuménico, Orlando Figueiredo tanto conviveu com Luiz Pacheco como com Pacheco Pereira, e o arco ideológico de clientes vem desde esquerdistas exilados na Argélia a historiadores como Rui Ramos. O ex-ministro Rui Machete também vinha, aliás continua perto, porque mora num casarão pouco adiante. Foi o quarteirão mais policiado da Poço dos Negros durante o governo da Troika.

9. Agora, um terço do espólio da Avellar vai para doação, e, o restante, “uns 15 mil livros” para os anexos de Massamá, onde a família continuará a vender online. Além de morar perto dos pais, Elisa é, das duas filhas e sete netos, a única que segue o pai na livraria. Ele com 82, ela com 56, de bom grado voltariam à porta aberta com alguma solução camarária, um espaço onde várias lojas “históricas” se juntassem, rendas fora de mercado.

10. A casa de Massamá já estava cheia de livros na infância de Elisa. Quando algum colega da escola queria ler Júlio Verne, emprestavam. Um dia, ela e a irmã descobriram um pacote em cima do guarda-vestidos dos pais, e acharam que era presente: uma enciclopédia da vida sexual. Elisa tinha dez anos, foi uma “tarde delirante”. De resto, o pai sempre leu, conhecia o espólio de cor. Quando a filha veio para a Avellar Machado, ele pô-la no armazém a limpar capas. Milhares de livros depois, estava pronta.

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