Capital Papers: um roubo épico, mas legal

O Panamá é apenas um de entre centenas de países que se dedicam a tornar o seu território num destino aprazível para os despojos da exploração legal e do crime

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Muita tinta já correu e muita ainda há de correr, mas é de temer que a simples dimensão do fenómeno dos "offshores" seja suficiente para que toda esta tinta tenha como consequência quase nada. Porque, no fundo, no fundo, os "offshores" são uma vanguarda do pensamento e da racionalidade económica capitalista: acumular riqueza segundo quaisquer métodos, obter rendimentos da especulação e criar todos os meios para evitar a redistribuição da riqueza.

Olhando para as caras galácticas que foram denunciadas na exposição inicial dos 11 milhões de documentos dos Panama Papers — Lionel Messi, Vladimir Putin, Jackie Chan, Mauricio Macri, Petro Poroshenko, Bashar al-Assad ou David Cameron — podemos sentir sempre a pulsão para imaginar grandes "vendetas" políticas associadas à revelação parcial da informação. Mas os Panama Papers são mesmo uma revelação parcial: ainda não foram divulgados todos os 11 milhões de documentos, a Mossak Fonseca é apenas uma de entre milhares de empresas de advogados dedicadas a esconder o dinheiro de multimilionários e o Panamá é apenas um de entre centenas de países que se dedicam a tornar o seu território num destino aprazível para os despojos da exploração legal e do crime.

Dos documentos revelados sabe-se já que a Suíça e Hong Kong são os dois locais onde estão a maior parte das empresas receptoras do dinheiro: Hong Kong tem 37 mil, a Suíça tem mais de 38 mil. De seguida, no "ranking", entram o próprio Panamá, Jersey e Guernsey no Canal da Mancha, o Luxemburgo e o Reino Unido. A lista continua: Emirados Árabes Unidos, Bahamas, Isle of Man, Uruguay, Rússia, Singapura, Chipre, China, Mónaco, Estados Unidos... Esta fuga de informação, que com elevada probabilidade não é a operação total da Mossak Fonseca, mostra uma rede de escala global para distribuir dinheiro por empresas fantasma em dezenas de países em todos os cinco continentes. E estamos a falar, na maioria dos casos, de operações legais.

É importante ver que esta fuga de informação, sendo gigante, é minúscula. Portugal é identificado como tendo 244 empresas receptoras, 23 clientes e 34 beneficiários. Basta olhar para a Zona Franca da Madeira, o nosso "offshore" nacional, que alberga 2016 empresas para perceberemos que o volume de riqueza que é roubado às populações mundiais e aos impostos que, melhor ou pior, financiam os serviços públicos e o bem comum, é um roubo épico. Mas legal. Não nos esqueçamos que todos os bancos resgatados com dinheiro público — BPN, BPP, BCP, BES e BANIF —, utilizaram contas "offshore" para esconder dinheiro que nós pagámos.

A ausência de um grande volume de dinheiro dos EUA identificado nos Panama Papers, quando se estima que só em 2014 os mais ricos americanos depositaram 1,2 biliões de dólares em "offshores", é relativamente fácil de explicar: eles preferem esconder o seu dinheiro nas Bermudas, nas Ilhas Caimão e em Singapura.

A lei do capitalismo

A procissão de lamúrias que por estes dias passa na televisão e nos parlamentos, da impotência de fazer o que quer que seja porque este é um problema “global”, recorda-nos que a única lei internacional que existe é a lei do capitalismo selvagem, ditada pela Organização Mundial do Comércio e pelo Fundo Monetário Internacional. Isso ficou patente no impotente acordo para as alterações climáticas em Paris em 2015, e na incapacidade de respeitar sequer a Convenção de Genebra em relação aos refugiados, tornando a União Europeia (UE) uma estrutura pária e de párias.

A UE só respeita, integralmente, a omissão de leis que facilita os "offshores", não apenas financeiros: a imposição de políticas de austeridade aos países do sul e do leste da Europa é a criação de facto de um "offshore" laboral e ambiental do qual se podem beneficiar as lideranças do centro da Europa.

A política dos últimos anos, de “atracção de investimento”, com precarização, privatização de recursos públicos e naturais, gigantes perdões fiscais e folgas generalizadas em relação ao que se aplica à restante população da periferia europeia não é senão um caminho consciente para criar o derradeiro "offshore" europeu, a zona económica especial.

Nada disto nos deve merecer muito espanto: o Offshore Leaks em 2013, divulgado pelo mesmo consórcio de jornalistas, com 2,5 milhões de documentos que revelam os beneficiários de 122 mil empresas sedeadas em "offshores", de 12 mil intermediários e 130 mil beneficiários em 170 países resultou em nada. A mesma notícia dada de outra maneira, de que os 1% mais ricos do mundo possuem mais dinheiro do que os 99% restantes, também resultou em nada.

Não estamos a receber novidades. Não é novidade que os dinheiros do terrorismo, da máfia, do tráfico de armas e de drogas estejam sentados na mesma conta que os dinheiros da fuga aos impostos. Obedecem simplesmente à mesma lei. Capitalismo. Nele não existe corrupção, não existe crime, não existe fuga aos impostos. Existe capital e como acumulá-lo. Se nos offshores está presente cerca de 8% de toda a riqueza mundial, é mesmo nas grandes praças financeiras que circula o grosso do dinheiro do crime — na City de Londres, no NYSE, no NASDAQ, na Euronext, na Bovespa, na HKEx, na SSE.

Os "offshores" são só mais uma arma, como a austeridade ou a xenofobia, para que os de cima se mantenham na sua posição de sempre, furtando-se a contribuir para o bem comum e podendo albergar os seus pequenos e grandes crimes sem ter de prestar esclarecimentos à plebe. Acabar com eles seria óptimo, mas se nos foi dado a ver uma ponta, o lençol ainda está longe de poder ser arrancado.

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