O mundo aos papéis

… ou como a papelada do Panamá mais não é que um canal maior do que o que lá existe e que nos liga, a todos, aos mais sangrentos e desumanos crimes dos nossos dias

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Dustin Lee/Unsplash

Para europeus maduros como eu, o Panamá é daqueles países que quase só fazem sentido em histórias de ficção – “O Alfaiate do Panamá”, de John Le Carré é o mais conhecido – ou de fricção: duas independências entre 1821 e 1903, da Espanha e da Colômbia, respetivamente, e uma invasão em 1989, pelos Estados Unidos, para prender (só?) o general Noriega, ligado ao narcotráfico internacional. E tem, claro, o famoso canal, gigantesca empreitada de engenharia civil, que poupa milhares de milhas na navegação entre o Atlântico e o Pacífico.

Se o pensamento ocidental com origem no Renascimento (finais do século XIV) for escolhido como princípio da modernidade, das liberdades individuais e da exaltação da criatividade como factor humano, então o Panamá é um território ainda muito verde para mexer assim tanto com o Mundo. Mas vai mexer. E muito.

Os “Papéis do Panamá”, gigantesca e medonha ponta de um iceberg que nos congela diante da tamanha podridão dos nossos dias, dificilmente serão queimados pelas ‘incineradoras das opiniões’, tradicionalmente ligadas aos interesses económico-financeiros que têm devastado as vidas das pessoas em qualquer parte da Terra.

Os documentos e provas agora divulgados remetem para assados em lume brando nas sociedades ocidentais ou frituras sob labaredas imensas noutras paragens menos cristãs, onde (outros) profetas da desgraça, desenhados por conceptualidades religiosas e ideológicas muito mais fanatizadas, submetem a Humanidade a leis tão sangrentas que envergonham Calígula ou Ghengis Khan, autênticos meninos por comparação com o Daesh, a Al Qaeda e o… sistema financeiro à escala global.

Quem começou primeiro: o fanatismo religioso ou a ganância humana? É um pouco a história do ovo e da galinha, ambos resultam em sociais-fascismos e não me compete, aqui, estar com teses sobre a História do Homem. Mas há uma relação muito próxima entre todos.

Sobre os “Papéis do Panamá” muito se ouvirá e se conhecerá nos próximos dias. Políticos, personalidades das artes e dos desportos, gente da alta finança, tudo malta com muito mais dinheiro do que alma estão sob mira do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação.

Mas o que me traz aqui não é a descoberta ou a revelação de factos sobre algo que todos sabemos mas nem sempre conseguimos provar. É antes a certeza de que é a ganância que move as elites, conceito que antes tinha uma conotação relacionada com o Pensamento, o Conhecimento e a Cultura, mas que hoje é epíteto de diferenciação social, de desapego humano, de pessoa que vive para o seu umbigo e que, entre pares, se protege em forma de facha.

Não há só papéis no Panamá. Há dessa papelada em todas as offshores do Mundo. E há portugueses visados, como há gente de todas as nacionalidades, de países com crenças e ideologias diferentes e até inimigas. Mas a ganância – lá está! – não tem cor, credo ou raça. Nem sequer tem emblema clubístico exclusivo.

E do que se trata isto, afinal? Ah, ok, fuga aos impostos nacionais e transnacionais. Parece coisa simples e nada sangrenta? (03) Até poderia parecer, se os dinheiros ‘lavados’ nos Panamás do planeta não tivessem quase sempre origem criminosa e socialmente devastadora. E com origens várias: desvio de fundos públicos e à ordem de quem os gere em nome dos povos, receitas ilegais entre negócios legais, narcotráfico, transações de armas e de materiais preciosos, tráfico de misérias pessoais (da prostituição aos órgãos humanos)… enfim, um chorrilho de tudo o que é impossível taxar por ter origem criminosa ou de tudo o que se pretende amealhar sem passar pela fórmula subsidiária onde assentam os princípios de humanidade, os tais que sugerem aos que mais ganham um maior contributo para o equilíbrio social. Sim, essa era a essência daquilo a que chamamos impostos e a razão por que nos chamam contribuintes.

Conhecer-se-ão mais nomes, mais casos e outras offshores. Acredito mesmo que o sistema financeiro vai tremer, de novo, e que as pessoas terão aquela sensação de que, afinal, o Bem poderá triunfar sobre o Mal.

Ah, não, esperem! Esqueci-me de algo importante e, afinal, ganharão os de sempre. Pois, é que a ganância começa cedo. Começa no berço que se pretende melhor do que o teu, continua na escola que pretende ser melhor do que a tua e cresce na ambição desmedida, que é sempre superior à tua. E assim todos nos esquecemos dos que, sem ter o que comer ou beber, sem formação cívica ou educação básica, pretendem ter deuses maiores do que os nossos, que os ajudem a tirar-nos o que consideram ter-lhes sido roubado. Nem que seja à bomba!

Sim, todos os deuses são gananciosos e têm púlpito nos Panamás deste mundo.

*O autor já nem sabe se escreve conforme ou contra o Acordo Ortográfico, já que ninguém se entende e todos nos compreendemos quando queremos.

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