As limitações da justiça portuguesa
O TEDH veio, mais uma vez, lembrar a importância da liberdade de expressão.
Portugal foi condenado, esta semana, pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) por violação da liberdade de expressão numa excelente decisão proferida no caso Pinto Coelho contra Portugal (n.º 2).
A jornalista Sofia Pinto Coelho tinha divulgado gravações de um julgamento, com distorção das vozes, num trabalho seu para a SIC em que pretendia demonstrar que a condenação de um dos arguidos tinha sido um erro judiciário. Por esse facto foi julgada e condenada pelo crime de desobediência previsto na lei para a divulgação não autorizada de gravações judiciais.
Recorreu para o Tribunal Constitucional que não encontrou nada de estranho na obrigação legal de o jornalista ter de pedir autorização judiciária para a reprodução dos registos sonoros de um julgamento; mesmo que tenham passado dez anos sobre o julgamento em causa.
E a jornalista dirigiu-se a Estrasburgo devidamente apoiada não só na razão que lhe assistia, como pelo facto de já ter visto Portugal a ser condenado por violação da liberdade de expressão num anterior caso seu – Pinto Coelho c. Portugal (N.º 1), em que reproduzira numa peça para a SIC um documento constante de um processo judicial sem autorização do tribunal e pela qual fora condenada em Portugal.
Para o TEDH, dúvidas não havia de que se estava perante um interferência na liberdade de expressão e que a mesma era legítima, visando, segundo alegava o governo Português, a protecção do direito à palavra dos intervenientes no julgamento bem como a boa administração da justiça.
A questão que restava resolver era a de saber se tal interferência – a condenação criminal da jornalista – era necessária numa sociedade democrática, no sentido de existir uma “necessidade social imperiosa” da mesma como resulta da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e de sucessivas decisões do TEDH.
Para o Tribunal Constitucional o facto de ser necessária uma autorização judiciária para a divulgação de gravações das declarações prestadas num julgamento, sem qualquer limite temporal e mesmo depois de ter terminado o julgamento, não era desconforme ou excessivo com as exigências constitucionais da liberdade de expressão. Segundo o governo Português, a jornalista não tinha solicitado a autorização ao tribunal e por isso mesmo não permitira ao juiz ponderar os valores em causa, a liberdade de expressão de um lado, e o direito à palavra e à boa administração da justiça, por outro. E embora nenhum dos intervenientes no processo tivesse apresentado queixa pela divulgação das gravações, o Estado português entendia que as gravações de julgamentos, porque resultavam de uma obrigação legal para instruir os recursos, não podiam ser utilizadas fora do processo sem um prévio controlo judicial. Sendo certo que a jornalista poderia ter relatado os depoimentos dos intervenientes dos julgamentos sem recorrer às gravações.
O TEDH não aderiu às explicações do governo Português antes optando pelas razões de Sofia Pinto Coelho, no sentido que a sua condenação representava uma desnecessária interferência, numa sociedade democrática, na sua liberdade de expressão.
O facto de nenhum dos intervenientes processuais se ter queixado da divulgação das gravações do julgamento – as vozes tinham sido deformadas – afastou, para o TEDH, qualquer preponderância do direito à palavra sobre a liberdade de expressão. E embora o direito à palavra tenha consagração constitucional no nosso país, o mesmo não está consagrado na CEDH, pelo que o seu valor sempre seria menor que o da liberdade de expressão.
Quanto à necessidade de assegurar a boa administração da justiça, o TEDH notou que a sentença condenatória não levantava tal questão, não se compreendendo como poderia estar em causa a boa administração da justiça quando o caso já fora decidido com a condenação do arguido.
Ora do lado da liberdade de expressão, para além de ser um assunto de evidente interesse público, encontrava-se uma jornalista que não obteve as gravações ilicitamente e que estava a tentar demonstrar um erro judiciário, isto é, a escrutinar o trabalho dos tribunais. Para o TEDH, é por demais evidente, que não cabe ao Estado nem ao TEDH, definir a forma como os jornalistas transmitem as informações – com directos, gráficos, gravações de imagem ou de voz, voz-off ou quaisquer outros meios. A liberdade de imprensa assim o exige.
Não teve, assim, o TEDH muitas dúvidas (6 votos a favor e 1 contra) em declarar que Portugal, uma vez mais, violara a liberdade de expressão de um seu cidadão.
Condenações que continuarão a existir porque os tribunais portugueses preferirem aplicar mecanicamente a lei sem ter em conta a realidade concreta, nomeadamente ponderando os valores e interesses que estão em jogo. No caso concreto: da divulgação das gravações não tinham resultado quaisquer prejuízos para a justiça e para os cidadãos mas sim diversas vantagens em termos de informação pública sobre matéria relevante.