Portugal, local de passagem
Alguns europeus radicalizados na jihad passaram por Portugal onde ficaram em casas de amigos de amigos ou de familiares de amigos, que conheceram nos seus países. Essa estadia não é comparável a recuo de uma organização clandestina e terrorista.
Portugal tem sido utilizado como local de passagem, um interface no sistema de viagens de jovens jihadistas europeus que, com uma estadia de poucos dias em Lisboa, pretendem despistar os serviços de informação ocidentais e a polícia de Ancara, apurou o PÚBLICO junto das forças de segurança - a Turquia é o seu destino imediato a partir do qual tentam entrar na Síria para se juntarem nas filas do autoproclamado Estado Islâmico (EI). Enquanto por cá estiveram foram discretos e beneficiaram de apoios de amigos e de familiares de portugueses que conheceram na Grã-Bretanha, que se radicalizaram e pegaram em armas em território sírio ou no Iraque, mas até agora não foi encontrada uma estrutura ou célula com a marca de água do EI.
Foi em 2013 que a secreta britânica alertou os seus congéneres portugueses para um facto que lhes pareceu insólito. Três jovens de Londres, investigados por se terem radicalizado nalgumas mesquitas da capital do Reino Unido, compraram bilhetes em companhias low-cost para Lisboa, como o PÚBLICO então noticiou. Ao aeroporto da Portela, chegaram como turistas com poucos recursos. As investigações feitas levaram a outras conclusões.
Na linha de Sintra, nos arredores de Lisboa, mais concretamente nas localidades de Mira Sintra, Mem Martins e Algueirão, ficaram em casas de familiares e amigos de portugueses que conheceram em Londres, alguns dos quais já estavam como “combatentes estrangeiros” do EI na Síria. O trio não foi interpelado pela polícia portuguesa, que seguiu os seus movimentos, anotou contactos, estilo de vida e modus operandi. Até que, dias depois, voltaram ao aeroporto da Portela para apanhar um avião para a Turquia. O recurso a Lisboa tem uma explicação: do aeroporto, as linhas aéreas turcas operam um voo directo por dia para Istambul, entre terça e sexta-feira; e aos sábados, domingos e segunda-feira, há duas ligações, uma de manhã outra à tarde.
A escala na Portela era para dificultar a sua detecção pela polícia turca. Se entrassem directamente na Turquia vindos do Reino Unido, ficavam imediatamente sob suspeita, pelo alerta da secreta britânica, de pretenderem passar a fronteira turco-síria e aliar-se ao EI, pelo que arriscavam a expulsão. Vindos de Lisboa, podiam dissimular as suas intenções. Não tiveram êxito: a cooperação triangular entre Londres, Lisboa e Istambul impediu-os de seguirem viagem à chegada ao aeroporto turco. As autoridades da Turquia alegaram irregularidades nos vistos ou incumprimento de procedimentos administrativos para lhes barrarem a entrada.
A passagem por Sintra e arredores foi apenas instrumental, uma escala técnica de baixa intensidade. Segundo as investigações de Fernando Reinares, professor universitário e perito principal de terrorismo internacional do Real Instituto Elcano de Espanha, na pertença à EI está, em secundaríssimo lugar uma qualquer opção ideológica. Ainda mais difuso, e mesmo inexistente, é o conhecimento do islão. O recrutamento na Europa, sustenta Reinares, advém de uma rede de conhecimento estabelecida através de vínculos afectivos, de parentesco ou de vizinhança. Foi assim que se fizeram amigos dos portugueses de Londres e recorreram a estas amizades para se hospedarem em casa dos seus familiares durante breves dias.
Dito de outra forma: não foram albergados por uma célula do EI, mas foram hóspedes de famílias ou de amigos de amigos. O que se diferencia do clássico esquema de “recuo” numa organização terrorista, que implica conhecimento dos objectivos, adesão aos princípios e apoio logístico com um fim determinado.
"Vivemos numa confusão”
A natureza da própria comunidade islâmica residente em Portugal – cerca de 50 mil cidadãos – diferencia-se, em muito, da que existe noutros países europeus. Na sua esmagadora maioria, são oriundos das antigas colónias – especialmente de Moçambique e Guiné-Bissau – têm vida social e profissional reconhecida e estão inseridos num país que é o seu. “Em Portugal, as comunidades islâmicas são escassas, estão integradas, pelo que seria fácil de detectar a presença de radicais”, assinala Ângelo Correia, presidente da direcção da Câmara de Comércio e indústria Árabe-Portuguesa.
Estar inserido social e laboralmente, significa que não vivem em guetos. O seu número ser escasso possibilita a identificação dos lugares de culto e o acompanhamento das prédicas. Serem portugueses é estarem em casa confortáveis nos problemas e virtudes. Assim tem sido e as forças de segurança não têm conhecimento de processos de radicalização nesta comunidade. Ou de militância a favor do Al-Andaluz, que reclama a inclusão de Portugal e Espanha no Grande Califado, o objectivo territorial do EI. Os cerca de 15 portugueses que se radicalizaram, cinco dos quais já morreram nos combates da Síria e Iraque, ou estavam no estrangeiro - caso dos que moravam em Londres -, ou eram a segunda ou terceira geração de emigração portuguesa em França e no Luxemburgo, com problemas de identidade e inclusão.
Contudo, o estudioso Fernando Reinares deixa reparos. “A previsão da radicalização feita [na Europa] desde 2005, em dez anos, foi um fracasso, na verdade não se sabe o que fazer, se optar pelo multiculturalismo ou pela assimilação. Vivemos numa confusão”, alerta.