Cruyff, o insubstituível
Por tudo o que fez e deixou no futebol, Johan Cruyff é um daqueles nomes que se tornou imortal. Pelo penálti a dois toques no Ajax. Pelo futebol total na Holanda. Pela revolução futebolística no Barcelona.
Nos primeiros tempos, não há cá lugar para substituições nem suplentes – só o banco, para o treinador e o massagista. Depois, a partir de 1968-69, lá entram uns jogadores para o banco, por norma só dois, um defesa polivalente e um avançado. Mais tarde, já quase não há espaço para tanta malta. Ao todo, cinco (com guarda-redes e tudo). Agora, sete. Com tanta oferta (a FIFA aprova as três substituições em 1995-96), ainda há treinadores old fashion, resistentes ao tempo. Ai as substituições, as substituições.
Alex Ferguson, lembram-se? O escocês, quase sempre ladeado por Carlos Queiroz, raramente faz as três substituições permitidas por lei. Tal como Luis Enrique. Das 30 jornadas da Liga 2015-16, há 14 sem espremer o banco até ao limite. Bobby Robson, remember? Quem não se lembra da sua estreia em Alvalade? É um sábado à noite, 22 de Agosto de 1992, e o Sporting-Tirsense acaba 0-0, sem nenhuma alteração do inglês durante os 90 minutos, o que muito irrita os adeptos "leoninos". Já o continental Pep Guardiola, por exemplo, engana-se num Saragoça-Barcelona e esboça uma irregular quarta substituição, com a entrada do ucraniano Chygrynskyi. É o próprio defesa-central que recorda Pep do facto e isso desencadeia uma risada interminável no banco, com Henry e Touré em plano de destaque perante o desespero de Guardiola, encostado ao banco, com a cara tapada pelas mãos, em sinal de vergonha.
Bem, isto é o mote para o tema substituições e para uma em particular, a 3 de Abril de 1982, no Ajax-NEC, para o campeonato holandês. Ao intervalo, a vitória está mais que garantida (3-0) e o treinador Kurt Linder substitui o mágico Johan Cruyff, um veterano de 34 anos, pelo estreante Marco van Basten, um miúdo de 17. Raramente uma substituição significa tanto no mundo do futebol como esta, porque representa a passagem de testemunho entre dois génios do futebol holandês e até mundial, que juntos, por exemplo, ganham mais Bolas de Ouro (seis, três para cada) que Inglaterra (5), Itália (5), Brasil (4). Na altura, Cruyff é um monstro consagrado e ninguém acredita ainda na grandeza de Van Basten, que, embora tenha marcado um golo de cabeça nesse jogo, é bom para ser suplente de Wim Kieft, esse sim considerado a última grande descoberta da formação do Ajax.
Nessa época de 1981-82, o Ajax é campeão holandês com 117 golos marcados. Em 1982-83, o Ajax, com Cruyff e Kieft no ataque e Van Basten como suplente de luxo (nove golos em 20 jogos), é novamente campeão, agora com 106 golos. E só em 1983-84, com a saída de Cruyff para o Feyenoord e de Kieft para o Pisa, é que Van Basten se assume como titular. E a partir daí, nunca mais pára. De marcar golos, claro. Ao todo, 151 em 172 jogos pelo Ajax, incluindo todas as competições, entre 1982 e 1987, ano em que substitui a Holanda pela Itália (Milan), devidamente autorizado pelo seu treinador. Quem? Ora essa, Cruyff – com quem partilha grandes momentos, como a conquista da Bota de Ouro em 1986 (melhor marcador europeu) e da Taça das Taças em 1987. Essa amizade mantém-se ao longo dos anos, com Van Basten a telefonar sempre a Cruyff quando as coisas lhe correm assim-assim em Milão. E essa relação nem azeda em 2008 quando Cruyff se demite do Ajax por incompatibilidades de ideias com o treinador. Quem? Van Basten, ora essa. É o próprio Cruyff quem sugere o nome de Van Basten para a reestruturação do departamento técnico do clube. “Trata-se apenas de diferenças de opinião em termos profissionais e não de um conflito profissional”, desabafa Cruyff antes de bater com a porta. E continuam amigos, à boa maneira holandesa (ou seja, descontraída). Mais amigos ainda que naquela noite de 3 de Abril de 1982. Ai as substituições, as substituições.
Aqui vai mais uma história. Holanda e Alemanha não vão à bola uma com a outra. É uma rivalidade secular, transposta para o futebol nos anos 70, aquando da final do Mundial-74, em Munique. Uma imagem descreve o futebol total de Cruyff. Mal o árbitro apita, Cruyff recebe no meio-campo holandês e segue rumo à área, imperturbável. Ultrapassa um, dois, três alemães em velocidade e simulações até ser derrubado por Höness. Penálti para a Holanda aos 65 segundos de jogo. A Alemanha já está a perder e ainda não tocara na bola. Esta ousadia ainda lhe vai sair caro. Ai vai vai.
Muito bem, domingo, 8 de Fevereiro de 1976. Em Sevilha, o Barça acaba de sofrer o 2-0. No banco,o treinador alemão Weisweiler fala com Paco Fortes (esse mesmo, o futuro jogador-capitão-treinador do Farense). A bola vai ao meio e é dado o sinal da substituição. Sai Cruyff. Noooooo. É isso mesmo. Sai Cruyff, entra Fortes. Na conferência de imprensa, Weisweiler fala um espanhol carregado de rrrr e com os óculos na mão. Muito simplesmente diz aos jornalistas que “Cruyff joga mal fora de Camp Nou” e afasta-o da partida seguinte, em Salamanca. “Ele não está em condições.”
Cruyff nem quer responder à letra. “Senão, vou dizer mal de alguém.” Os adeptos do Barcelona vão ao treino com letreiros “Cruyff sim, Weisweiler não”. E dizem que o Barça descerá à II Divisão sem Cruyff. O clima de guerra fria entre holandês e alemão está em ponto de rebuçado. O presidente Montal i Costa organiza então uma assembleia-geral no palácio blaugrana, onde é decidida por maioria a dispensa de Weisweiler, que chegara em 1975 a Barcelona protegido pelos quatro títulos de campeão alemão (um pelo Colónia e três pelo M’Gladbach, onde também ganha uma Taça UEFA). Cruyff ganha o braço-de-ferro. E nunca mais é substituído. Nunca mais. Nem hoje. Nem amanhã. Nem depois. Cruyff é insubstituível. Pelo penálti a dois toques no Ajax. Pelo futebol total na Holanda. Pela revolução futebolística no Barça. E, claro, pela volta à Cruyff, um movimento hoje comum, que consiste em rodar sobre si próprio, passar a bola com o pé direito por detrás do corpo e cruzar com o esquerdo, sem dar a mínima hipótese ao adversário de se manter de pé. Um pouco à imagem de todos nós quando ouvimos a notícia do adeus. Ai os imortais, os imortais.