“Precisamos de um sistema financeiro mais simples e mais pequeno”
Nuno Teles, investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, defende que a banca em Portugal não cumpriu a sua função essencial com efeiciência, deixando um lastro de endividamento que é agora preciso corrigir.
Nuno Teles não acredita que apenas uma melhor supervisão e regulação da banca em Portugal resolva o problema criado pelo peso ganho pelo sector financeiro na economia portuguesa nas últimas décadas. Autor do livro "A Financeirização do Capitalismo em Portugal", publicado recentemente em conjunto com João Rodrigues e Ana Cordeiro Santos, o economista defende que apenas uma “intervenção mais robusta” do Estado e uma resolução do problema do endividamento com a saído do euro poderia fazer desaparecer este “lastro” que, afirma, limita a capacidade da economia para se desenvolver
No vosso livro fazem uma análise bastante crítica dos resultados do processo de financeirização da economia portuguesa. Mas essa financeirização também trouxe várias coisas boas. As pessoas compraram casas, as empresas públicas investiram…
Trouxe. E o livro dá conta que essa é precisamente uma parte importante do sucesso político deste aumento da importância do sector financeiro na economia portuguesa e de todo o processo de endividamento externo, sobretudo privado. Todo o sucesso do processo de liberalização e privatização deve-se muito à forma como de facto houve pelo menos um período, nos anos 90, em que temos realmente crescimento económico muito alimentado por esse fluxo de capitais de fora para dentro. No livro temos três estudos de caso e um é sobre a habitação que é a principal causa de endividamento das famílias. E, de facto, esse endividamento permitiu a franjas alargadas da população portuguesa ter acesso à habitação própria. Mas depois há todos aqueles que ficaram de fora e nós vemos hoje, com a crise, como este processo alargou as desigualdades. É verdade que quem está endividado nunca pagou tão pouco pelo seu empréstimo, mas quem está sujeito ao mercado de arrendamento está sujeito ao problema contrário, as rendas têm vindo a disparar. Há aqui uma exclusão da maioria da população em relação a quem conseguiu recorrer ao endividamento.
O crédito não foi para as massas?
Não, isso é um outro mito. O acesso ao crédito está muito concentrado nos quintis de rendimento mais elevados. Nomeadamente no crédito à habitação, que representa 80% dos empréstimos. No crédito ao consumo, a coisa é mais democrática, embora as condições desses empréstimos sejam muito mais penalizadoras, com taxas de juro muitas vezes usurárias. A habitação é um exemplo de como há aqui vários interesses em causa. E o que nós temos é toda uma aceitação do modelo de provisão privada de habitação, que hoje já não é contestado. Actualmente, quando pensamos em Estado Social, pensamos em saúde, em educação, e a habitação desapareceu. Isso tem a ver com o sucesso do próprio processo. Depois há um caso que é aparentemente contrário, o da água, em que temos a provisão ainda sobretudo pública. Mas o que tivemos foi, tal como aconteceu com a habitação, um enorme fluxo de capital estrangeiro, sob a forma de dívida. Aí também tivemos progressos: a qualidade da água e do tratamento da água e dos esgotos foi grande.
E qual é o problema?
Há vários problemas. Na água, tudo foi financiado com endividamento ou com fundos da união europeia. Não houve investimento público. Temos assim um problema do sector das águas, que é o elevado nível de endividamento das empresas, o que a dada altura, sobretudo com a filosofia que vem das entidades reguladoras, leva a que pretenda recuperar todos os custos, que são sobretudo financeiros. Portanto há uma grande pressão para o aumento das tarifas ao consumidor. O que foi até há pouco tempo bastante pacífico, porque as tarifas não aumentaram e a infraestrutura melhorou, hoje é muito mais disputado. Nós vemos as dívidas das autarquias às empresas do sector e há uma enorme pressão hoje para a privatização do sector. Hoje temos actores financeiros estrangeiros como investidores estratégicos. O capital nacional está muito endividado e os players estrangeiros entraram agora porque as empresas portuguesas precisam de liquidez e estão a vender os seus activos. É um processo que em última análise poderá resultar na privatização.
E para a economia como um todo, qual o efeito?
Depois há o problema macroeconómico. É o endividamento externo que está na origem do que foram as consequências da crise financeira internacional em Portugal. As causas muitas vezes são, como no caso da habitação, decisões racionais do ponto de vista individual mas que do ponto de vista agregado traduzem-se num endividamento externo da economia portuguesa que é claramente insustentável. Portugal passou, como nós chamamos no livro, por um processo de finaceirização semi periférica. Por um lado, Portugal tinha uma estrutura produtiva típica das periferias, que não concorrem directamente com o centro. E portanto passou por um processo de liberalização financeira e privatização que se traduziu num endividamento que vai para estes sectores mais protegidos da concorrência internacional, o caso da habitação e do sector da água. Só que ao contrário de outras periferias, nós beneficávamos de estar, primeiro nos anos 90 no processo de convergência nominal para o euro, e depois de 2001 no euro. Ou seja, nós ao contrário de países periféricos, conseguimos endividar-nos a um preço muito baixo e quase sem limite quantitativo. Isto aparentemente poderia ter sido uma oportunidade, mas transformou-se num lastro sobre a economia portuguesa desde 2001. E, depois, com a crise financeira internacional, há uma fuga de capitais. E a dívida não desapareceu.
No ponto em que estamos, desfinanciarizar é a solução? Não teria agora custos demasiado elevados?
Qualquer mudança estrutural de uma economia traz sempre custos, nem que sejam sectoriais. E desfinanciarizar há-de trazer custos também, se for essa a opção. O que acontece ao investimento, por exemplo, é importante. Mas temos de perceber que o sector financeiro tem sido um sector bastante ineficiente. Se nós pensarmos que a razão de existir do sector financeiro é de afectar crédito de forma eficiente a uma economia, isso não aconteceu em Portugal, apesar dos níveis de endividamento que temos e do peso que têm na economia. São enormes os recursos que são necessários na própria economia para afectar de forma eficiente capital. Precisamos de um sistema financeiro mais simples e mais pequeno.
Mas o que é que defendem com a desfinanciarização?
Tirar peso ao sector financeiro e ter uma nova direcção para o capital. E para isso, é necessária a reestruturação da dívida, mas que seja uma reestruturação da dívida externa, pública e privada. Exige controlo de capitais e soberania monetária. E isso articula-se com a questão do investimento. Com uma saída do euro, e a partir do momento em que o Estado tem o controlo sobre a sua moeda, isso permite financiar o Estado directamente. Sair do euro pode ser feito de muitas formas.
A saída do euro é imprescindível?
É uma condição necessária, embora não suficiente para mudar a estrutura da economia portuguesa. O investimento tem de ser financiado por impostos, mas também por emissão monetária pelo menos no curto prazo. E que o investimento público seja a alavanca para o investimento privado. Porque hoje o grande problema da economia portuguesa é haver capacidade por utilizar. Mas para além disso, temos de pensar numa reconversão da economia portuguesa que elimine este problema de cair no défice externo outra vez. É preciso reafectar capital a outros sectores que substituam importações, que permitam outro tipo de integração internacional da nossa economia e que permitam um modelo de crescimento mais equilibrado em relação àquele que foi este dos últimos 20, 25 anos.
E os custos e riscos da opção de saída do euro?
Sim tem custos e riscos. No livro, o que fazemos é assinalar quais são alguns dos problemas que se colocam na saída do euro, mas ao mesmo tempo também tentar desmontar muitos dos riscos que lemos sobre a saída. Há três pontos fundamentais numa transição que precisamos de resolver. Temos de evitar uma crise bancária, uma crise do sistema de pagamentos e uma crise cambial. Sabemos que sair do euro enquanto resultado não pensado e não planeado pode ser bastante problemático no curto prazo.
Como é que se evitam essas três crises?
No sistema de pagamento, há experiências históricas de redenominação que são razoavelmente bem sucedidas. E é muito mais fácil hoje redenominar moeda do que era antes por causa das divisas electrónicas. O grande problema que se coloca aqui é de uma possível crise bancária porque, embora as dívidas das famílias sejam redenominadas na nova moeda, a banca endividou-se lá fora no que passará a ser uma moeda estrangeira e agora tem os seus compromissos numa moeda nacional. E aí, argumentamos que é preciso consolidar e resolver o sector da banca portuguesa como um todo e isso implica o controlo público da banca, com uma reestruturação global dos seus balanços em relação ao exterior. É algo que, se pensarmos vai acontecendo aos poucos, mas da pior forma. O processo do Novo Banco e das obrigações que passam do banco bom para o mau, isto já é uma reestruturação, não só do seu balanço, mas também da dívida externa, porque são sobretudo de credores externos de que estamos a falar. A questão aqui é que vivemos com uma banca zombie. Há uma grande desconfiança sobre a qualidade dos balanços, mas não há uma intervenção pública no sentido de os limpar e pô-los a funcionar devidamente.
E a desvalorização cambial?
Naturalmente no curto prazo há sempre um overshooting. No caso da Islândia, o que aconteceu foi uma desvalorização a dada altura de 50% da moeda, depois da reestruturação da dívida externa via falência dos seus bancos, traduzindo-se numa taxa de inflação de 12%.
Defende que é preciso planear bem um processo destes. Em democracia isso é possível? A Grécia não tem mostrado que isto não é verdadeiramente controlável?
O caso grego é bastante elucidativo. Inicialmente não houve uma corrida aos depósitos, houve um jogging aos depósitos, digamos assim. Que veio muito de trás e que também aconteceu em Portugal. Foi um processo que se arrastou ao longo do tempo, e o grande problema foi o governo grego não se ter imediatamente comprometido com o controlo de capitais e, como consequência, com a quase inevitável saída do euro. E, portanto, o que assistimos na Grécia foi que, sempre com o compromisso da permanência no euro, se permitiu que se chegasse a um ponto em que de facto que a fuga de capitais foi de tal ordem que foi a União Europeia a impor esse controlo, que aliás existe até hoje.
Não há uma forma mais progressiva de fazer isto, de desfinanciarizar a economia, sem saída do euro?
Pode haver. Quando olhamos para os casos de alguns movimentos políticos, como os casos do Corbyn nos Reino Unido e do Sanders nos Estados Unidos, há vários passos que podem ser dados ao longo do tempo. Mas no nosso caso, nós estamos numa camisa de forças que é quase a condição primeira para conseguir fazer tudo o resto. O que é aliás muito parecido historicamente com o padrão ouro. O padrão ouro, toda a gente está agora de acordo que foi um desastre para a economia mundial, mas é impressionante a resistência dos Estados e dos povos nos anos 20 e anos 30 em abandonar o padrão ouro. O euro é um bocadinho mais flexível que o padrão ouro, mas é um bom paralelismo histórico
A nível internacional, a ideia de que os bancos têm de perder dimensão tem sido apoiada em diversos sectores. Acredita que pode haver uma mudança a esse nível?
Desde a crise que se fala muito do problema de haver bancos que são “too big to fail”, mas a verdade é que entretanto os bancos ficaram maiores, o que aconteceu foi exactamente o contrário. E é o que está a acontecer em Portugal. Com a união bancária há aqui uma filosofia europeia de criar bancos europeus, acabar com os pequenos bancos nacionais. Obviamente que há países que estão melhor colocados. O Santander ou o Deutsche Bank estão melhor colocados que qualquer banco português. Esta ideia está em curso.
E a proposta vinda da Islândia, que prevê o fim da possibilidade dos bancos criarem dinheiro?
Na Islândia, o plano seria o acabar com esta capacidade dos bancos criar moeda, substituindo-os por fundos de investimento. Os bancos como nós os conhecemos acabavam. Eu tenho dúvidas que isto vá para a frente porque, para já, implica repensar todo o sistema financeiro. E depois não penso que o problema esteja na criação monetária, está é na forma como ela é feita e para onde vai. Essa é que é uma discussão que devemos ter enquanto comunidade política democrática, ou seja quais são as nossas necessidades de investimento. É o consumo? São as energias renováveis? Um esquema como o da Islândia é, para mim, um limite ao investimento. Eu percebo o que motiva o plano, é uma grande falta de fé na banca, lá como cá. Não acho que seja um bom substituto.
A centralização das decisões de para onde é que vai o crédito funciona? Seria eficaz?
A centralização já existe. É razoavelmente claro quando falamos do poder do BCE sobre o sector financeiro português. E estamos a falar de uma instituição não democrática, que é independente do poder político. O que seria necessário era uma solução que nos permita resolver aquela tensão entre as decisões micro e macroeconómicas. E por isso, é que seria preciso um sistema bancário mais pequeno, mais eficiente e que esteja dirigido sobretudo à questão do investimento e da mudança estrutural da economia portuguesa, ou seja subirmos degraus na sofisticação tecnológica da economia e da sua diversificação. E há provas de que o Estado pode potenciar isso.
A propriedade privada dos bancos não pode também garantir isso?
Podemos ter vários tipos de propriedade. Mutualista e tudo o mais. Agora que é precisa uma intervenção robusta do Estado, isso é. Hoje, quando olhamos para a banca não sabemos o que está lá. Só sabemos quando estouram.
Mais supervisão não resolveria?
Houve muitas falhas de supervisão e de regulação, mas não me parece que esse problema, de não se saber exactamente o que está no balanço dos bancos, se resolveria facilmente dessa forma. É preciso estar na administração dos bancos para se saber como é que são afectados os recursos dos bancos lá dentro.